O medo à serviço do neoliberalismo
Ao longo da história da humanidade o medo sempre foi usado para dominar e
controlar a sociedade. No Brasil, em específico, a utilização deste
sentimento, difundido pelos grandes meios de comunicação, criminaliza as
ações populares e os movimentos sociais. Esta é a idéia defendida pela
socióloga Vera Malaguti Batista, que realizou uma pesquisa histórica, que
mostra como o medo, desde a época da colonização é usado para manter as
hierarquias, deixando a sociedade mais conservadora. "Sempre os
movimentos do povo brasileiro são tratados como crime, baderna, bagunça,
caos. Acredito que esta é uma recorrência histórica para manter uma ordem
que é muito parecida com a escravocrata imperial", afirma.
De acordo com Vera, nesta estratégia promovida desde sempre pela elite
brasileira, os meios de comunicação de massa são uma ferramenta eficaz.
"No Brasil, uma das coisas mais assustadoras é o domínio da alma e das
mentes do povo brasileiro pelo monopólio da televisão. A existência de um
discurso único faz com que o MST apareça sempre como uma ameaça e não
como uma grande luta do povo brasileiro por sua soberania".
Em entrevista ao Jornal Sem Terra, a socióloga defende que, para barrar
esta situação, os movimentos sociais brasileiros devem se unir na luta
contra o monopólio dos meios de comunicação. "Hoje em dia, defendo que
esta é uma luta que deveria ser considerada prioridade".
Jornal Sem Terra – Como o neoliberalismo usa o medo para manter sua
dominação e exploração?
Vera Malaguti – Realizei um estudo da história do Brasil e
principalmente do Rio de Janeiro, sobre os medos que apareciam no século
19. Minha primeira observação foi que a elite, quando quer descartar a
massa trabalhadora brasileira, desenvolve, principalmente através da
imprensa, uma estratégia para demonizar as ações populares.
Historicamente, há uma maneira de olhar o povo brasileiro como uma
ameaça, principalmente a juventude popular. Na minha pesquisa de
mestrado, trabalhei drogas e juventude na capital carioca e descobri que,
se um menino negro e morador da favela for pego com a mesma quantidade de
droga que um menino branco, morador da zona sul, os discursos construídos
pelo sistema serão completamente diferentes.
Um será dependente, o outro traficante. Porque este outro representa o
povo a quem sempre é lançado um olhar de desconfiança.
No século 19, a cidade do Rio de Janeiro contava com a maior
concentração de africanos das Américas.
A cidade branca e proprietária usava o tempo todo o discurso do medo. No
entanto, quem vivia sobre condições horríveis de vida era a população
africana, que era açoitada, mal tratada e submetida às piores condições
de trabalho. Por isso, ali existia uma situação social explosiva.
Ao invés de se trabalhar os conflitos pela via social, o discurso do medo
faz com que o Estado deixe de atender a população para construir um
sistema penal. Desde que o neoliberalismo se instalou no Brasil, com
maior intensidade a partir de 1994, nós tivemos a população penitenciária
quintuplicada. O Ministério da Justiça trabalha com a perspectiva de que,
em 2007, o Brasil tenha 500 mil presos. Em 94 este número ficava em torno
de 100 mil. O que assistimos hoje é um movimento de criação de
precariedade social, desemprego, destruição dos laços coletivos,
despolitização e a criminalização da pobreza.
O MST é um exemplo disso. O Movimento tem uma luta legítima que vem desde
sempre na história do Brasil. É o que o professor e filósofo Marildo
Menegatti chama de revoluções adiadas.
JST – Quais as conseqüências que isso tem para a sociedade brasileira?
VM - Na década de 60, durante o governo de João Goulart, quando se
discutia as reformas de base, o medo da revolução, da violência foi se
destilando pela imprensa, quando na verdade aquele era o momento em que a
mobilização do povo brasileiro tentava avançar. Hoje existe, não só a
criminalização do MST, mas do trabalho precário (flanelinhas e camelôs),
dos meninos e meninas que vivem na rua. Um país decente olharia para
estas crianças que estão jogadas nas calçadas com um olhar solidário, que
reconheceria neles, seus filhos. No entanto, o medo faz com que a
sociedade erga mais prisões, mais grades, mais muros, intensificando o
distanciamento entre a pobreza e uma pequena elite que acumula cada vez
mais riquezas. O mais curioso e absurdo disso tudo é que é esta burguesia
a mais protegida, a que mais tem seu medo mais divulgado. Enquanto quem
vive a barbárie, é a população pobre do campo e da cidade.
Por tudo isso o medo é um instrumento fundamental para se manter a
hierarquia da sociedade. No século 19, não existia nada mais legítimo do
que a rebelião escrava, dada a condição que estas pessoas viviam. No
entanto, a imprensa naquela época se referia aos quilombos da mesma forma
com que hoje os meios de comunicação mostram a favela, o baile funk, o
comércio de drogas, os camelôs. Os grandes nós que existem na sociedade
brasileira, como o acesso à terra e à educação, tem sua origem na maneira
com que o Brasil se construiu: excluindo seu povo das riquezas.
O medo é uma ferramenta fundamental para manter este mecanismo porque ele
é paralisante e torna a sociedade conservadora. Uma população que teme a
favela vai querer que se extermine seus moradores. Por isso, a morte
diária dos jovens de lá é vista como algo natural. Da mesma forma com que
no século 19, os capoeiras eram exterminados porque representavam uma
ameaça à sociedade escravocrata. Quando olhamos para a realidade atual,
percebemos que as questões do século 19 permanecem. Sempre os movimentos
do povo brasileiro são tratados como crime, baderna, bagunça, caos.
Acredito que isso é uma recorrência histórica para manter esta ordem que
é muito parecida com a escravocrata imperial.
O medo deixa a sociedade engessada e conservadora. Ele não é um
sentimento libertador, pelo contrário, faz com que as pessoas se fechem,
desconfiem uma das outras. Ao longo da história da humanidade, este
sentimento foi de grande uso. O nazismo, a Inquisição da Igreja, os
Estados Unidos com a perseguição ao Islã, são exemplos claros. A eleição
de um inimigo cria a propagação do medo, que produz resultados concretos,
como a criminalização das lutas sociais, a criação de bodes expiatórios,
a obsessão pela segurança pública. Se nós discutíssemos estas questões
sem a propagação do medo promovida pelos meios de comunicação, estaríamos
falando sobre Reforma Agrária, educação pública, programas sociais,
saúde, trabalho. Entretanto, quanto mais inseguros ficamos no
neoliberalismo com relação à garantias trabalhistas, acesso à saúde;
quanto mais desamparados nos sentimos nesta ordem econômica, mais
conservadores nos tornamos.
JST – E qual o papel dos meios de comunicação nesta estratégia?
VM – Os meios de comunicação são os protagonistas desta história. Sem
eles, não seria possível difundir o medo. Os movimentos sociais e
populares são vistos como uma ameaça à ordem, o que faz com que a
sociedade conceda uma resposta penal e não política, econômica e social à
estes casos. Este mecanismo é muito eficaz para manter as coisas como
estão por muitos anos na nossa sociedade. No Brasil, uma das coisas mais
assustadoras é o domínio da alma e das mentes do povo brasileiro pelo
monopólio da televisão. A existência de um discurso único televisivo faz
com que o MST apareça sempre como assustador e violento e não como uma
grande e bonita luta do povo brasileiro por sua soberania. A gente tem o
monopólio dos meios de comunicação e um discurso único que trabalha o
medo o tempo todo. É um mecanismo sutil e subjetivo, mas que tem um poder
extraordinário.
Um exemplo é o que está acontecendo na Bolívia com a nacionalização do
gás. Os bolivianos estão exercendo seu direito soberano de se apropriar
das suas riquezas naturais. No entanto, os meios de comunicação provocam
uma falsa crise, constróem uma outra realidade para nos afastar das
conquistas do povo boliviano e também do venezuelano, o que provoca a
desagregação deste momento histórico que vivemos na América Latina. O
medo do Chávez, do Fidel representa os grandes fantasmas da América
Latina porque simboliza o povo.
JST – Este receio aparece, de certa forma, na inscrição ordem e progresso
que está no símbolo máximo do país, que é a bandeira nacional.
VM – Sim, e neste tipo de ordem a hierarquia social não pode ser
questionada. Cada um tem que ficar no seu lugar. No século 19, nós
tivemos aqui várias rebeliões populares em todo o país, do Oiapoque ao
Chuí. Desde a Farroupilha, no sul, a Cabanagem no Pará, a dos Malês na
Bahia, a Praieria em Pernambuco. Este foi um período de grande medo de
que o povo chegasse ao poder, o que comprova que esta é uma situação que
vem desde sempre. Os colonizadores entraram no território latino-
americano, como se os índios representassem uma ameaça, quando na verdade
foram espanhóis e portugueses que promoveram um genocídio em todo o
continente. Hoje percebemos isso quando os Estados Unidos tratam a
resistência no Iraque como terrorismo, quando quem está sendo barbarizado
são os iraquianos.
No Brasil, a sociedade é levada a enxergar o MST, um Movimento com que
ela naturalmente se simpatizaria, de uma forma negativa. Todo este
esforço é para manter distância entre organizações populares e sociedade,
porque o medo distancia.
JST – Como é possível enfrentar esta conjuntura?
VM – Temos que manter as lutas setoriais que temos: por terra, educação,
saúde, na cidade e no campo. Mas temos todos, de uma forma muito intensa,
que lutar contra o monopólio dos meios de comunicação. Quando um governo
que se diz progressista, se submete à estes veículos, acabamos andando
para trás, ou seja, ficamos na mão deste poder midiático imenso de
criação de uma realidade política determinada. Hoje em dia eu defendo que
esta é uma luta que deveria ser considerada prioridade. É onde todos os
movimentos sociais brasileiros deveriam se unir, porque hoje nós não
temos voz. Mesmo um Movimento como o MST que tem uma grande e profunda
organização, acaba não tendo espaço ou sendo manipulado, aparecendo como
um perigo para o Brasil.