Sentença do Tribunal dos Crimes do Latifúndio – Minas Gerais
Vistos, neste momento especial, instituições e pessoas dotadas de respeitabilidade e de responsabilidade públicas expressam o inconformismo social diante da ruptura, pelas organizações do Estado, do pacto assumido com os cidadãos, e exigem o restabelecimento dos mecanismos que assegurem a plena vigência do Estado de Direito. A função social da propriedade deve ser assim entendida:“Não dás da tua fortuna aos seres generoso para com o pobre, tu dás daquilo que lhe pertence. Porque aquilo que te atribuis a ti, foi dado em comum para uso do todos. A terra foi dada a todos e não apenas aos ricos” (Sto. Ambrósio). “Quer dizer que a propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto.”
Sabe-se quão incômoda e angustiante tem sido a passagem humana pelo mundo nestes tempos em que as desigualdades sociais se agravam em proporções geométricas. A reversão de modelos de exclusão social latente é o único meio capaz de restabelecer a paz e a eliminação da sensação de vazio que se acumula em razão da valorização do acúmulo de capital em detrimento da construção de valores espirituais e cristãos.
Ao instalar um tribunal de opinião pública, a sociedade reproduz simbolicamente o devido processo legal que o Estado deixou de realizar na realidade de nosso dia a dia. É um mecanismo de reafirmação dos valores fundamentais da civilização contemporânea, cristalizados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e, por igual, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. È o resgate preponderante do princípio da dignidade da pessoa humana como qualidade intrínseca da natureza do ser humano, como bem inalienável, indisponível e norteador da conquista de todos os direitos fundamentais: “Uma autêntica democracia só é possível num Estado de Direito e sobre a base de uma reta concepção da pessoa humana. Aquela exige que se verifiquem as condições necessárias à promoção quer dos indivíduos (...) quer da subjetividade da sociedade, mediante a participação e co-responsabilidade (CA, 45).
João Paulo II, na encíclica Evangelium Vitae adverte que tudo o que se opõe à vida como dentre outras, as condições degradantes do trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis, são infamantes, ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador.
O grande orador sacro Antônio Vieira, no Sermão da Primeira Dominga do Advento, pregado na Capela Real, em 1650, mostra, claramente, os males que advêm da omissão.
Permitam-me repetir algumas das palavras ditas nessa memorável peça oratória: "A omissão é pecado que se faz não fazendo", pois o tempo não tem restituição alguma. "Uma das coisas de que se devem acusar e fazer grande escrúpulo aos ministros é dos pecados do tempo. Porque fizeram o mês que vem o que se devia fazer o passado; porque fizeram amanhã o que se havia de fazer hoje; porque fizeram depois o que se devia de fazer agora; porque fizeram logo o que se havia de fazer já".
“Construir a cidade, lugar de existência dos homens e das suas comunidades ampliadas (...) é tarefa em que os cristãos devem participar. A esses homens amontoados numa promiscuidade urbana intolerável, é necessário levar uma mensagem de esperança, mediante a fraternidade vivida e a justiça concreta” (AO, 12).
É para fazer agora, é para fazer já que, em diferentes tempos e lugares, tribunais de opinião foram criados para julgar violações sobre as quais os organismos formais da Justiça sequer se manifestaram. Em alguns casos os julgamentos de opinião pública não só protestaram contra a omissão do Estado, como lograram sensibilizar os tribunais formais. O Tribunal Russel, o Tribunal dos Povos, o Tribunal Internacional do Trabalho
Infantil e, mais proximamente, os tribunais contra os crimes do latifúndio são exemplos de iniciativas internacionais de grande porte. O Tribunal Tiradentes, no Brasil dos anos 70, constituiu-se num marcante instrumento de denúncia dos crimes praticados por agentes do Estado durante a ditadura militar.
Ao assumir a realização deste Tribunal para julgamento dos crimes do latifúndio no Estado de Minas Gerais- violações ao direito à vida; à liberdade, ao trabalho e ao meio ambiente - temos como objetivo, agora alcançado, de denunciar as omissões do envolvimento do Estado na prática dessas violações. Violações que, pela sua motivação, continuidade e extensão, guardam os lindes de verdadeiro genocídio.
Ressaltamos o caso bárbaro da chacina de Unaí, ocorrido em 28 de janeiro de 2003, da qual três auditores fiscais foram vítimas: Erastótenes de Almeida Gonçalves, Nelson José da Silva e João Batista Soares Lage e o motorista Ailton Pereira de Oliveira. Os quatro servidores da Delegacia Regional do Trabalho de Minas Gerais foram vítimas de uma emboscada na zona rural daquele município, onde fiscalizavam fazendas da região.
Outro caso lamentável e que sempre será lembrado com profundo pesar foi o massacre de Felisburgo, ocorrido em 20 de novembro de 2004, no Acampamento “Terra Prometida”, instalado na Fazenda Nova Alegria. As vítimas de homicídio foram: Iraquia Ferreira da Silva, Miguel José dos Santos , Francisco Ferreira do Nascimento, Juvenal Jorge da Silva e Joaquim José dos Santo. As vítimas de tentativa de homicídio: José Maroto Lima, José Estácio Reis Silva, Valdemar Barbosa Lima, Antônio Gomes da Silva, José Maria Martins Soares, José Rodrigues Chaves, Sebastião Lopes Reis, Joaquim Batista da Silva, Wilson Cardoso Santana, Vanderley da Costa Rodrigues e dois adolescentes Jorge Batista da Silva e Fernanda Pinheiro dos Santos. Ressalte-se que antes da ocorrência de tal tragédia, a situação de insegurança e tensão já havia sido relatada a vários órgãos e entidades.
Destaque-se também os casos das milícias armadas em várias localidades do Estado: Pirapora, Ituiutaba, Santa Vitória, Campina Verde, Manga, Montes Claros, Patrocínio e outros; de acordo com denúncias oferecidas pelo Ministério Público Estadual. Porém, os processos judiciais tramitam lentamente na Justiça de Primeira Instância.
Ademais, vale, ainda, recordar efeitos nefastos se propagam por meio do latifúndio no que tange ao plantio das culturas de extensão, notadamente a monocultura do eucalipto. É sabido por pesquisadores e trabalhadores rurais que o eucalipto sustenta o trabalho escravo, trabalho infantil nas carvoarias, com a conseqüente expulsão das famílias do campo. Tal efeito se faz perceber principalmente em razão da grande concentração fundiária, o que contribui para o êxodo rural. E evidenciam-se entre os efeitos negativos dessa monocultura, a devastação do meio ambiente, sobretudo no que se refere aos mananciais tributários de importantes bacias hidrográficas, tal como do Rio Jequitinhonha, do Rio São Francisco e do Rio Doce.
Ressalte-se, também, a expulsão, desaparecimento e mortes dos moradores de áreas atingidas pela construção de barragens, obrigados a deixar suas terras em razão da imposição das empresas do setor elétrico. As indenizações são, na maioria das vezes, insuficientes para a recomposição das perdas irreparáveis sofridas pelos moradores das regiões nas quais as obras são instaladas.
A situação de exclusão dos quilombolas em Minas Gerais no enfrentamento com os latifundiários e o descaso do Poder Público também são destaques neste Tribunal.
A impunidade é o traço comum nos casos em julgamento por este tribunal, que se qualifica nos assassinatos de trabalhadores rurais que ousam lutar por um pedaço de terra onde possam sobreviver.
Os casos de desrespeito e violação de direitos humanos não atingem apenas os cidadãos de um dado Estado soberano, mas vão muito além, ultrapassam suas fronteiras, pois afrontam a consciência de todos e o próprio sentimento de humanidade.
Daí, a instituição deste Tribunal para alcançarmos uma decisão de qualificativos éticos, morais e pedagógicos que possa servir como indicativo ao Governo da República para a formulação de uma política agrária voltada para o homem.
A falta dessa política, aliada a uma legislação que privilegia o capital e a propriedade privada, aplicada com desconhecimento por parte de juízes e tribunais, de que a lei não vale por si mesma, mas tem de ser interpretada e aplicada segundo seus fins sociais, quer dizer, referenciada a um dado momento histórico vem determinando conflitos que se agravam a cada instante, onde a fragilidade de muitos se submete à violência daqueles que se beneficiam do conservadorismo de quantos pretendem impor um compasso de espera, ou seja, a permanência do status quo, não importa sejam violados direitos fundamentais, como o direito de viver, de receber os frutos da terra mediante os duros trabalhos de lavrar, de semear e colher para a sua manutenção e da sua família.
Os senhores jurados receberam informações vivas dessa situação de conflito, mostrando claramente a conivência daqueles que detêm o poder político no exercício da função pública com os representantes do latifúndio, apegados à sacralização do direito de propriedade, ignorando-se a norma constitucional a impor como regra soberana, o seu condicionamento à sua função social.
E reagiram na forma dos votos que formularam, condenando as práticas do Estado claramente violadoras dos direitos humanos sejam civis, políticos, ambientais, culturais econômicos e sociais, exigindo uma Reforma Agrária realmente eficaz em nosso país. Enfim, condenando o grande gerador da violência e da exclusão social em Minas, o latifúndio.
Por último, estamos convencidos de que os efeitos dos trabalhos deste Tribunal serão muito maiores do que quaisquer expectativas atuais, se ele tiver fortalecido em cada um de nós o compromisso de luta solidária pelo Direito à vida.
Agradeço aos ilustres advogados e a todos aqueles que atuaram na infra-estrutura para a realização deste Tribunal.
Remetam-se cópias do veredicto dos senhores jurados, desta sentença e demais documentos deste julgamento ao Presidente da República, Ministros da Reforma Agrária, da Justiça e do Meio Ambiente, ao senhor Governador do Estado de Minas Gerais, aos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, ao Presidente da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais, aos senhores presidentes do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, às Comissões de Direitos Humanos dos Estados Americanos e das Nações Unidas, ao Parlamento Europeu e ao Parlamento Latino-Americano, ao Procurador Geral da República e ao Presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e ao Procurador Geral de Justiça deste Estado; ao Tribunal Penal Internacional e à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
E que se promova os reparos que forem possíveis a diversos danos causados às vítimas de da opressão, das mazelas do abismo da desigualdade, da ganância desenfreada dos acumuladores de bens e capital em detrimento do próximo. Que se restabeleça por meio da simbologia de uma data marcante como a de hoje, a esperança na busca pela utopia de justiça social para todos.
Só o comprometimento popular de assumir, nas mais diversas esferas, a tarefa de efetivar e exigir a observância dos direitos fundamentais é capaz de garantir a vida digna de todos os membros da comunidade.
Não é possível a existência indigna, posto que a dignidade é qualidade inerente à condição humana. Veda-se a coisificação e a instrumentalização do ser humano quando se determina que a dignidade é pressuposto fundamental do ordenamento jurídico ao qual está submetido. Os direitos fundamentais que expressam tal determinação, tal como o contraditório, são o sustento da democracia tardiamente delineada como o regime constitucional adotado pela República Federativa do Brasil.
Somente com a percepção de que não existem direitos constitucionais mais ou menos importantes, mais ou menos aplicáveis, uma vez que todos são positivados na Carta Magna em respeito à soberania popular, é que se determinará a obediência nos mais variados níveis de todos os direitos fundamentais. Não haverá supremacia latifundiária ou mercadológica capaz de ditar as normas preferenciais, em detrimento das demais; não serão aceitas ingerências desses “entes super-poderosos” na escolha dos mecanismos determinantes da manutenção do seu modelo ideal, ao qual não interessa a preservação de direitos duramente conquistados. Não e não. Quando o povo acorda e percebe que ele sim é o detentor de “super-poderes” no regime democrático - ao arbítrio, à demagogia, ao autoritarismo, não restará alternativa que não seja a de mudar, talvez, e possivelmente, de país e até de planeta. Ainda que tal posição seja travestida de utopia, fica como lembrança a lição de Eduardo Galeano, ao ensinar que a utopia serve para nos fazer caminhar, ainda que para um horizonte muito distante.
Belo Horizonte, 4 de abril de 2006
TRIBUNAL DOS CRIMES DO LATIFÚNDIO
Realizado durante o I Encontro dos Movimentos Mineiros
Dia 04 de abril de 2006, na ALMG
• JUIZ PRESIDENTE:
Durval Ângelo – Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de Minas Gerais
• CONSELHO DE SENTENÇA:
(Dentre 21 jurados convidados - entidades, órgãos públicos e movimentos sindicais, sociais e religiosos - foram sorteados 07 jurados para compor o conselho)
1. SINDICATO DOS JORNALISTAS – Aloísio Lopes
2. PROJETO MANUELZÃO – Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro
3. IHC – Instituto Helena Grecco – Bizoca
4. CUT Nacional e Estadual – Paulo Moreira
5. AMES – Associação Metropolitana dos Estudantes – Renato Campos
6. CIMI – Conselho Indigenista Missionário – Wilson Mário
7. CÁRITAS BRASILEIRA – Frederico Santana
• ACUSAÇÃO: Elmano de Freitas – Rede Nacional de Advogados Populares
• DEFESA: Delze Laureano – Prof. da Faculdade Dom Helder Câmara e da Rede Nacional de Advogados Populares.
• VÍTIMAS E TESTEMUNHAS:
Conflitos Agrários - MG
Dr. Afonso Henrique – Procurador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Conflitos Agrários
Massacre de Felisburgo: (05 vítimas)
Jorge, Cilene, José Maria, Jorge Batista da Silva (adolescente) – Acampamento Terra Prometida
Chacina de Unaí:
Carlos Calazans – Delegacia Regional do Trabalho de Minas Gerais
Deserto Verde (Eucalipto)
Élcio Pacheco (MNDH)
Frei Gilvander (Comissão Pastoral da Terra)
Comunidades Quilombolas
Edimar - Gorutubanos
MAB
Movimento dos Atingidos por Barragem
Pe. Antônio Claret
• OBSERVADORES:
Juana Calfunao Paillalef – Chefe Loncko da Comunidade “Juan Paillalef”, da Nação Mapuche – Chile (Homenageada com a Medalha Chico Mendes de Resistência – Tortura Nunca Mais – RJ)
Dep. Estadual - Pe. João
Dep. Estadual - Laudelino
Dep. Estadual - Rogério Correia
Dep. Estadual - Elisa