O Haiti e sua luta de libertação

2006-03-02 00:00:00

As cenas são indizíveis. Ruas sujas, metralhadoras matraqueando, correrias, gente em confusão. No meio disso tudo, os capacetes azuis. Soldados da ONU chamados para promover a paz. O Haiti segue perdido de sua soberania, tutelado pelos Estados Unidos e agora, ainda mais: por outros cães de guarda a serviço do império. Tristemente, o Brasil é quem está no comando de mais esta indigna intervenção na vida de um povo que já foi exemplo de luta neste continente.

Mais de um ano depois de outra invasão estadunidense, os haitianos foram às urnas para eleger um novo presidente. Mas, o resultado acabou escapando da mão dos invasores e, de novo, provocou-se o caos. A provável vitória de um ex-ministro de Arisitide e também ex-presidente que o sucedeu, levou a um plano de fraude, abortado só depois que o país inteiro se mobilizou novamente. Ao final, René Préval foi declarado presidente conforme apontavam as urnas, mas a impressão que se tem é de que o destino das gentes do Haiti é seguir vivendo o que os EUA chamam de “democracia tutelada”. Ou seja. São livres – podem votar – mas só nos candidatos que os EUA decidirem que são os ideais para manter o “equilíbrio” no Caribe. Por equilíbrio compreenda-se: jamais se aproximar de qualquer idéia socialista, tais como as pregadas pelo barbudo-mor, Fidel Castro, inimigo número um do país do Tio Sam. O novo presidente, que já não pertence mais a mesma organização que Aristide, aparentemente não terá muitas condições de sair do jugo de dominação. A prova maior é que os soldados da ONU seguirão no país com o objetivo de “manter a ordem”.

Um pouco de história

O Haiti tem uma longa tradição de fibra e resistência. Dominado pela França nos tempos coloniais, foi ponto de chegada de milhares de negros escravizados, trazidos da África para enriquecer os brancos, donos de plantação. Pois foram esses negros que, tocados pela torrente de liberdade desencadeada pela revolução francesa em 1789, reuniram-se em exércitos e provocaram a libertação do Haiti, numa epopéia sem precedentes nas nações do sul do mundo. Foi a primeira colônia a libertar a si mesma da escravidão, com os negros assumindo o comando, personificados nas figuras indeléveis de Toussaint Loverture e Dessalines.

Mas a libertação da escravidão e o poder negro não significaram soberania por muito tempo. Os ventos liberais não encontraram guarida no pequeno país, que seguiu com uma organização social muito próxima do jeito colonial de ser. Assim, o que emergiu foi uma poderosa oligarquia latifundiária, militar e, o que é pior, eivada de racismo, com os negros discriminando os mulatos – considerados traidores por serem misto com brancos. Isso perdurou por todo o século XIX e manteve o país cativo de uma crise que impediu o processo de democratização promovido pelo liberalismo. E foram essas idéias de supremacia negra e o nacionalismo exacerbado que acabaram isolando o país do resto do mundo. Debaixo de um forte aparato militar, aliado a uma mentalidade colonial, ficou difícil para a população empobrecida articular lutas de resistência.

A pobreza endêmica do país também tem suas causas lá no início da formação do Estado. Duas décadas depois de a França reconhecer a independência, exigiu o pagamento de uma indenização de 150 milhões de francos em ouro. A “dívida” foi aceita pelo poder local e desde então, o país foi sangrado. Sem conseguir manter a economia agro-exportadora baseada no café e esgotado pela dívida, o Haiti, no início do século XX deixou-se submeter pelos Estados Unidos que ocupou o país em 1915.

Um país ocupado, escravo outra vez

A ocupação estadunidense durou 19 longos anos - de 1915 a 1934 - e foi feita para “ajudar” o país a modernizar suas instituições políticas, implantando a “liberdade e a democracia”. Nota-se assim que o discurso dos governos dos EUA é sempre o mesmo. Justificam a usurpação da vida das gentes e das soberanias nacionais com a messiânica promessa de democratizar. O certo é que, nesse período todo de ocupação, a democracia que produziram foi a mesma engendrada nos demais países da América Latina: democracia formal, representativa, sempre a serviço das elites locais e dos interesses econômicos das grandes potências.

Mas, a “grande obra” da intervenção foi a constituição da Guarda Nacional, treinada pelos militares estadunidenses com o intuito de “defender a ordem”. É essa guarda que vai assumir mandos incontroláveis ao longo dos anos e mesmo depois da retirada formal dos EUA, sempre atuando em defesa de interesses estrangeiros, até desembocar na elevação de François Duvalier ao poder, no ano de 1957.

Mais uma ditadura local

A chegada de Duvalier ao poder se deu num clima de quase convulsão social. A maioria da população seguia cada vez mais empobrecida, a ocupação estadunidense não lograra modernizar ou melhorar o país, as revoltas eram constantes. Típico clima para a instalação de um regime fascista, baseado no terror e na opressão militar. Com Duvalier nasceu o que ele chamou de “presidência vitalícia”, ancorada nos tristemente famosos “tontons macoutes”, espécie de para-militares que assumiram o comando da perseguição, das mortes e das desaparições de qualquer um que ousasse se opor à ditadura reinante. É bom lembrar que esta ditadura nunca foi questionada pelos EUA. Ao contrário. Tinha todo o seu apoio, com a CIA ajudando a desestruturar a sociedade civil, os sindicatos, os partidos políticos e toda a classe política. Além disso, durante o período ditatorial, os EUA, a França e a Alemanha aportaram consideráveis recursos para garantir o governo no poder. O regime de terrorismo de Estado imposto pela família Duvalier seguiu até 1986 - François morreu em 1971, mas, seguindo a lógica vitalícia, assumiu o seu filho Jean Claude - e deixou um saldo de 30 mil mortos, um milhão de exilados e um país completamente destruído.

A queda de Jean Claude em 1986 não foi uma coisa isolada, digna do realismo mágico das republiquetas latinas. Ela foi fruto de um longo e doloroso processo de resistência gestado a partir da chamada “igreja vermelha”, que atuava na senda da Teologia da Libertação - movimento que se espalhou por todo o continente oprimido, clamando por justiça e liberdade - e pelos poucos comunistas que ainda conseguiam atuar na ilha. No ano anterior, 1985, grandes revoltas populares aconteceram e foram esmagadas pelo exército de forma brutal. Houve clamor em todo mundo e os Estados Unidos foram obrigados a retirar o apoio a Jean Claude. Isso levou o então “presidente” a deixar o país, fugido, mas em segurança, a bordo de um avião estadunidense. Era o fim de um regime que saqueou a vida, a economia e os melhores sonhos dos haitianos por longos 28 anos.

Sem ditadura, mas sem governo

Com a queda dos Duvalier abre-se mais uma frente de guerra de disputa pelo poder. O Conselho Nacional de Governo que assume o mando é fruto de uma negociação em que, mais uma vez, a mão indelével dos Estados Unidos indica a direção. A presença de líderes da oposição dá um certo sul às reivindicações populares e, na contradição, o povo do Haiti inicia uma difícil caminhada no rumo de um tempo de nova libertação. Naqueles dias, mais de 70% da população estava mergulhada na miséria e 80% da riqueza nacional descansava nas mãos de pouco mais de três mil famílias.

A luta pela democracia plena não foi fácil. Havia que se confrontar com um exército sedento de retomar o poder, os para-militares, as castas da elite predadora e a presença sufocante da maior potência do mundo. Ainda assim, as gentes se mobilizaram e caminharam para uma eleição livre. Estavam certas de que não queriam mais a tal da “democracia dirigida”. Queriam ser sujeitos, inventar seu próprio modo de governar. Daí o surgimento de associações de bairros e toda a sorte de organizações populares. Tudo isso assustou a elite local que pretendia apenas uma mudança aparente, mais do mesmo, e a reação foi, de novo, brutal. Um massacre do exército em Porto Príncipe, deixando 300 mortos, cancelou o pleito e mergulhou o país em mais uma convulsão. O que se seguiu foi uma sucessão de presidentes-marionetes, impostos pelas elites com o aval estadunidense. Mas tudo isso não se deu na paz. Revoltas camponesas, rebeldias urbanas, gente em luta não faltaram. Destaca-se aqui o papel dos jornalistas e dos meios de comunicação que passaram a transmitir em creóle, a língua real, falada pelas gentes do país, insuflando à participação política.

A vitória do padre Aristide

Os governos-marionetes se reproduziram até 1990 quando, enfim, houve eleições gerais para a presidência. Contrariando todas as expectativas da elite reinante, a população acudiu em massa às urnas. Isso foi uma reação óbvia porque, nas catacumbas da vida real, o povo seguia se organizando e construindo uma alternativa de poder. Mais óbvia ainda foi a vitória de Jean Bertrand Aristide, um padre, da linha da Teologia da Libertação, muito carismático e amado pelos haitianos. O triunfo de Aristide, com 67% dos votos, foi a coroação de todo um processo que começara a partir da queda de Duvalier.

Mas, nem bem começou a governar, já as forças totalitárias iniciaram a reação. O presidente não era o esperado pela elite, muito menos pelos Estados Unidos. Sua ligação com a igreja vermelha o tornava um potencial aliado do “eixo do mal” comandado por Fidel, no Caribe. Além disso, Aristide falava em democratizar as instâncias, dar mais poder ao povo. Isso o tornava um “louco” e foi justamente essa a alegação da CIA: que o presidente tinha transtornos mentais. Aliado a isso, o presidente da República Dominicana iniciou uma gigantesca deportação de imigrantes haitianos causando mais confusão ao governo recém-eleito. Assim, em outubro de 1991, os militares dão um golpe e obrigam Aristide a fugir do país. Foram dois anos de “governo impostor”, mascarado de civil, assumindo como primeiro ministro o candidato derrotado nas eleições Marc Bazin, que era o apoiado pelos EUA. Outra vez, a população do Haiti viu-se roubada e mergulhada no caos, sob as botas do exército. Não havia de ser ainda a hora da libertação.

O clamor universal

Aristide, no exílio, conseguiu arrebanhar a simpatia de quase todo o planeta. Por todos os cantos crescia o clamor de governos e povos para que a vida voltasse a normalidade no Haiti e o desejo de sua gente fosse respeitado. Não havia argumento para o golpe e a farsa de um governo civil não convenceu. Dentro do país, o povo, já escolado na proposta de uma democracia mais participativa, também se levantava. Não parecia mais fazer efeito o discurso “nacionalista” dos golpistas que insistiam em dizer que não era para deixar que as nações alienígenas se metessem na vida do Haiti. Ninguém jamais mencionou o fato de que, por quase toda a vida, foi um outro país quem puxou as cordinhas dos governos títeres.

O certo é que a pressão internacional obrigou até os Estados Unidos a se manifestar pela volta de Aristide. Com ele, voltou a esperança de que o Haiti pudesse, finalmente, andar com suas próprias pernas na direção de uma sociedade mais arejada, trabalhando questões vitais como o analfabetismo, a saúde pública, o cuidado com o ambiente e, principalmente, a participação popular na vida do país. E foi buscando esses horizontes que o governo do padre católico se fez, sendo entregue em 1996 para o companheiro de organização (Lavalas), René Preval, então eleito presidente. Mas andar com as próprias pernas era coisa que os Estados Unidos jamais permitiria ao Haiti fazer.

Préval e, de novo, Aristide

O governo de Préval, de 1996 a 2001 transcorreu eivado por uma disputa política interna. Dentro do movimento Lavalas, duas concepções passaram a se digladiar. Uma, liderada pelo então presidente, que buscava modernizar o Haiti, dentro dos marcos do capitalismo e da globalização, sem conseguir resultados. E outra, comandada por Jean Bertrand Aristide, que aos olhos de alguns historiadores – como Gérard Pierre Charles - era de caráter conservador e autoritário, aliado a antigos membros do exército e para-militares. O certo é que em 2001, Aristide ganha as eleições com 91% dos votos, prometendo um tempo de paz e mudanças sociais. Mas, para os Estados Unidos, a figura carismática do ex-padre foi vista como um perigo à democracia – alegavam os EUA que Aristide queria implantar uma ditadura, coisa que nunca ficou provada.

Com esse argumento sendo aceito por boa parte do mundo, o presidente do Haiti começa a ser deixado sozinho. Perde ajuda internacional, não consegue crédito e, com isso, tampouco pode dar respostas ao caos que impera no país com um índice de 80% de desemprego, proliferação de gangues e violência extrema. Aproveitando-se disso, os partidos de oposição negam a legitimidade do presidente e elegem – de forma unilateral – um presidente provisional, constituindo um governo paralelo com figuras já conhecidas na história o Haiti por sua ligação estreita com os Estados Unidos. Estava tudo pronto para mais um golpe que mergulharia o país em novo caos. Durante dois anos seguem as denúncias de corrupção no governo e há até a tentativa de novo golpe dos opositores de Aristide. Sem sucesso, a oposição desestrutura a partir de grupos armados, operações terroristas e rebeliões pontuais. O país fica cindido e a onda de violência se espalha. A gota d’água para a queda do presidente foi a decisão do mesmo em reconhecer o Vudu como religião oficial do Haiti. A oposição chamou isso de “puro populismo”. Mas, para a população foi o respeito - tão esperado - pela religião que desde o princípio dos tempos os negros africanos tinham criado no país, e que 10 entre cada 10 haitianos preza.

A rebelião contra o governo instituído seguiu pelo país afora e ficou sem controle, a ponto de Aristide pedir ajuda internacional. Naqueles dias, os Estados Unidos se manifestaram dizendo que o país resolvesse sua situação dentro de suas portas. Que não havia porque interferir. De novo, o discurso falso dos estadunidenses. Quando não é de seu interesse, não intervêm. Foi só quando a queda do presidente ficou patente que os EUA mandaram pelotões de marines. Numa reunião com Aristide e diplomatas franceses lograram a carta de demissão do presidente. O Haiti estava, outra vez, sob o domínio dos mesmos.

A tropa de paz brasileira e o novo presidente

O Haiti sem Aristide seguiu tutelado e o que é pior, os Estados Unidos convocaram outros países para fazer o papel sujo. O Brasil foi chamado a dirigir a missão da ONU no país e lá está desde 2004 sob a alegação de um trabalho para a paz. Mas, o que se vê é uma triste intervenção na vida de uma nação já completamente degradada pela guerra e pela sede de poder de alguns. A mesma velha elite local predadora que aparece em cada rincão deste planeta. Gente que não aceita perder pequenos privilégios, que não aceita dar poder as gentes.

Agora, querendo aparentar respeito pelo Haiti e sua gente, os Estados Unidos e seus aliados decidiram “deixar” que o povo votasse, escolhendo seu presidente. Mais de 30 candidatos apareceram. O virtual vencedor era René Préval, ex-presidente que conseguiu tocar seu mandato com relativa calma, uma vez que não se chocava muito com os interesses estrangeiros e dava algum poder as gentes. Ele foi o único mandatário eleito democraticamente que governou e terminou seu governo. De novo, o povo haitiano foi às urnas em massa. Queria ser sujeito, eleger seu preferido. E, de novo, houve tentativa de fraude. Mais revolta, mais violência nas ruas.

Premidos pela opinião pública internacional, os Estados Unidos e seus aliados tiveram de reconhecer a vitória de Préval. Agora, o Haiti retoma outra vez seu caminho no rumo de um tempo de liberdade. A considerar a história, esta não vai ser uma caminhada tranqüila. Os interesses dos “tutores” sobre o pequeno país seguem os mesmos. Apesar de pobre e com uma capacidade mínima de se incluir em algum sistema produtivo que não seja o já tentado sistema de empresas maquiladoras, o Haiti é considerado estratégico por estar bem ali no Caribe, perto de Cuba e da Venezuela. Para os Estados Unidos é questão de honra manter o domínio sobre o país para seguir como o chefe-geral de toda aquela região, hoje sujeita a acordos leoninos que só fazem sangrar ainda mais suas parcas economias.

No meio de toda esta história de dores e sujeições, o Brasil se coloca como vassalo dos EUA, aceitando a versão de que o país não tem como conduzir sua própria história. Submetido a razão de Estado, Lula e seus comandados, no dizer do professor Nildo Ouriques, perderam a oportunidade de, com a causa do Haiti, discutir a questão do racismo no Brasil e convocar a América Latina a não colaborar com os Estados Unidos. Assim, perdido do trem da história, o governo brasileiro virou cão de guarda de um poder despótico, anti-libertário e anti-humano como o que os Estados Unidos exercem não só ali, no Caribe, mas em outras tantas partes do mundo.

Resta agora saber se René Préval vai conseguir governar esse pequeno país, esgotado, fraturado, dividido e cheio de chagas de tantos regimes violentos e ditatoriais. Ao ser identificado como ex-ministro de Aristide - mesmo que tenha criado um outro movimento pela qual se elegeu - não é pouco provável que os poderosos de plantão tentem desestabiliza-lo, sempre com o apoio das elites locais, caso Préval saia do rumo pré-determinado pelos “tutores”. Ao povo haitiano caberá a pior parte que é a do doloroso aprendizado rumo à libertação que, certamente, ainda está bastante longe.

- Elaine Tavares – jornalista no OLA/UFSC- O OLA (Observatório Latino-Americano) é um projeto de observação sistemática da luta popular na América Latina. www.ola.cse.ufsc.br