Questão Agrária: A polêmica além dos números

2006-01-16 00:00:00

A divergência entre movimentos sociais e governo federal sobre os números
da reforma agrária deixa claro que os lados envolvidos não falam a mesma
língua quando se trata de definir o que é, de fato, a reforma agrária. Em
22 de dezembro de 2005, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA)
anunciou ter assentado 117.5 mil famílias. Logo depois, o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Confederação Brasileira de
Trabalhadores na Agricultura (Contag) e Comissão Pastoral da Terra (CPT)
acusaram o MDA de maquiar os números, argumentando que o governo confunde
reforma agrária com regularização fundiária (mais informações na
reportagem).

Em entrevista coletiva, o ministro Miguel Rossetto afirmou que os dados
estão corretos, e que "não há nenhum espaço para discussão da qualidade
desses números. Eles traduzem exatamente as famílias que deixam de ser
sem-terra e passam a ter terra". Porém, para os movimentos sociais não
basta apenas distribuir terras. De acordo com o secretário de Política
Agrária da Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura
(Contag), Paulo Caralo, o MDA quer considerar como reforma agrária a
retomada de lotes e a regularização fundiária. No entanto, segundo
Caralo, o governo esquece que fazer reforma agrária significa
necessariamente também desapropriar terras improdutivas. "Nós não
concordamos. Muitas áreas em que o trabalhador já era posseiro há 10, 20,
30 anos o governo tem regularizado - o que nós achamos importantíssimo -,
mas não dá para contar isso como meta para reforma agrária", disse Caralo
à Agência Brasil.

QUAL REFORMA?

Roberto Baggio, da coordenação nacional do MST, explica que a reforma
agrária defendida pelos movimentos sociais prevê a alteração na estrutura
fundiária do país e uma mudança do modelo agrícola - que, atualmente,
privilegia o agronegócio em detrimento da agricultura familiar. Ao seu
ver, desde a colonização, o Brasil possui uma estrutura agrícola que
prioriza a monocultura, é dependente do mercado externo ao mesmo tempo
que se direciona a ele. Além disso, Baggio expõe que esse modelo se
caracterizaria por uma super exploração da mão-de-obra". O agronegócio de
hoje seria uma modernização conservadora", diz o coordenador do MST em
referência ao conceito disseminado pelo economista Celso Furtado (1920-
2004). Ou seja, ao mesmo tempo em que utiliza tecnologias avançadas,
fortalece os laços de dependência com o mercado internacional. "A nossa
agricultura está fragilizada e hegemonizada pelos grandes complexos
transnacionais", explica Baggio.

Em contraponto, um modelo agrícola alternativo teria o objetivo de
"fortalecer a soberania do país", com uma produção voltada para as
necessidades do mercado interno brasileiro, garantindo a soberania
alimentar do país. Outros pontos essenciais seriam o respeito à
legislação trabalhista, e ao meio ambiente.

Implementar este projeto, entretanto, é travar "uma disputa ideológica",
diz Altacir Bunde, da direção nacional do Movimento dos Pequenos
Agricultores (MPA). A disputa se dá tanto no governo como entre os
próprios camponeses. "Ir contra isso é uma luta muito difícil, pois as
elites, a mídia, têm um trabalho de cooptação de camponeses para que eles
assimilem o modelo dominante", analisa. Na esfera governamental, a
cooptação se dá com o próprio Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar (Pronaf). "Seu objetivo é incluir o pequeno camponês
na lógica do agronegócio e não procura viabilizar um modelo alternativo",
avalia Bunde.

MODELO ECONÔMICO

Se para realizar a reforma agrária é necessário mudar o modelo agrícola,
para mudar este último, é necessário também alterar a política econômica.
Para Plinio Arruda Sampaio, coordenador do 2º Plano Nacional de Reforma
Agrária, é inviável democratizar o acesso à terra com a atual política
econômica, uma vez que esta "concentra a renda e agrava a desigualdade
social, enquanto a reforma agrária é essencialmente distributiva".
Sampaio afirma que, mesmo as exportações agrícolas trazendo vantagens -
"como a geração de divisas" -, o balanço é altamente negativo, pois essas
receitas são usadas para se pagar uma dívida externa que já foi paga, "e
não para desenvolver o país". Sampaio acredita também que a reforma
agrária inclui fundamentalmente uma transformação na estrutura de poder
social e político. "Se o centro do poder econômico no campo não for
afetado, não haverá mudanças sociais profundas", argumenta. O MDA e o
Incra foram procurados pela reportagem do Brasil de Fato, mas não
quiseram se pronunciar.