Capatazes culturais: Entrevista com o Mattelart
Em entrevista à FNDC, em Porto Alegre, Armand Mattelart
analisa o papel dos conglomerados de mídia nas relações de
controle mundial
Mais do que encarnarem o papel de "Grande Irmão", do
clássico 1984, de George Orwell, os conglomerados de mídia
hoje são sérios candidatos a donos de culturas. Nas nações
onde eles entram, apoiados pelo capital financeiro que
alimenta aquisições estratégicas, instala-se um estado de
liberdade vigiada que ameaça a soberania e a autonomia dos
povos. É através das indústrias culturais regidas por estas
megacorporações que se prepara a guerra e se constrói a paz.
"A desregulamentação global do estado de direito pelo
imperativo da segurança estendeu consideravelmente a área
de ação da propaganda, da manipulação, da desinformação e
da mentira", afirma o pesquisador, professor e escritor
franco-belga Armand Mattelart, 68 anos, que já está em
Porto Alegre para o Fórum Social Mundial 2005. Preocupado
com este cenário, ele participa no dia 28 de janeiro, das
8h30 às 11h30, da conferência Conglomerados de Mídia: de
senhores da guerra a donos da cultura? na sala D601 do
espaço temático "Comunicação: práticas contra-hegemônicas,
direitos e alternativas" (Praça Seca ao lado da Usina do
Gasômetro).
Acompanhe trechos de uma entrevista exclusiva concedida à
equipe do FNDC:
Como o senhor observa a ofensiva do capital financeiro
mundial sobre a indústria da comunicação e do
entretenimento?
Este é um fenômeno que responde a uma lógica global. A
desregulamentação do sistema mundial de telecomunicações
teve um papel nodal neste processo já que precipitou a
aproximação das indústrias de conteúdos e das indústrias
continentais. Este processo é aberto pela onda de choque
mundial originada nos Estados Unidos, em 1984, com o
desmantelamento do quase monopólio do sistema doméstico,
mas ganha realmente força a partir de 1998, com o acordo da
Organização Mundial do Comércio (OMC) que generaliza a
"liberalização" das telecomunicações. A título de exemplo,
basta recordar a megafusão AOL-Time-Warner-CNN no início do
novo milênio, seguida de outra, o grupo francês Vivendi-
Universal. O "hubris" [termo grego que designa a confiança
exagerada do herói em si mesmo] destas operações explica
também seus tropeços posteriores e os da chamada "nova
economia". A concentração alcança todos os setores das
chamadas indústrias culturais. Desde a imprensa, os livros
e as livrarias até a rádio-televisão, passando pela
indústria discográfica. Ela se reforça nos países que já
possuíam altos índices de concentração e estréia nos países
que pareciam constituir uma exceção. Inclusive na França,
pátria da doutrina da "exceção cultural", três ou quatro
mercadores de armas e empresas da construção civil
controlam a maioria dos meios de comunicação. E o que dizer
da Itália de Silvio Berlusconi, que construiu seu poder
político apoiando-se em seu império midiático, que
extravasa amplamente o campo das redes de televisão. O
problema é tamanho que em 2004 o Parlamento Europeu alertou
sobre o risco que a liberdade de expressão e de informação
correm com a posição dominante de um punhado de grupos
midiáticos e convocou os responsáveis da União Européia a
elaborar uma diretriz que salvaguardasse o pluralismo dos
meios ameaçados pela concentração e a homogeneização
crescente do modo de tratar a informação e seu conteúdo. Os
atores do oligopólio midiático incorporaram em suas
estratégias de lobby a dimensão política dos debates
internacionais sobre a comunicação e as indústrias
culturais. Suas entidades representativas estão presentes
em todos os lugares onde se discute a "nova ordem mundial
da informação" (lema do qual elas se apoderaram em meados
dos anos 90 quando o G-7 forjou a noção de "Sociedade
Global da Informação"), exercendo pressões sobre os
governos e as instituições internacionais com vistas a
derrubar os marcos jurídicos que limitam as concentrações
ou impedem as posições dominantes. Elas não toleram
críticas a não ser as próprias.
Neste contexto, guerra e cultura são dois lados de uma
mesma moeda?
Como eu escrevi, a título de provocação, em meu livro "La
Comunicacion-mundo", publicado no início dos anos 90, "a
comunicação serve, antes de tudo, para fazer a guerra". A
guerra é, portanto, um componente essencial da história da
realpolitik da comunicação internacional ao longo do século
passado. Assim como a paz é um componente das tecno-utopias
da comunicação. Lembre-se da base ideológica do mito da
"aldeia global", lançado por Marshall McLuhan? nos anos 60.
Mas a entrada na era das cruzadas da "Global War", a guerra
contra o terrorismo a partir do 11 de setembro de 2001,
precipitou a redefinição da relação entre guerra, cultura e
comunicação. Eu diria mais: entre guerra e os mecanismos de
hegemonia cultural. Com o fim da guerra fria e o
desaparecimento do primeiro "inimigo global", o comunismo,
os estrategistas da "superpotência solitária" pensaram que,
para estender o "Mercado global democrático" - isto é,
levar o mundo para uma "comunidade pacífica de nações"
solidificada pelos valores do mercado - teriam que explodir
a acumulação de investimentos realizada nas mentalidades
coletivas em todo o mundo pelas indústrias culturais dos
Estados Unidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Era
preciso aproveitar-se da "Informacion Dominance", que
gozavam os Estados Unidos e sua cultura, como suporte
natural da universalidade. Deixar de recorrer às
estratégias que implicavam no uso da força e, pelo
contrário, tratar de convencer às demais nações que a
agenda de prioridades para a instauração de uma ordem
global regida pelo livre intercâmbio decidida pela
superpotência solitária era o único caminho racional e
razoável. Esta doutrina foi batizada como a estratégia do
"poder macio" ou "soft power". A esperança desmedida
depositada no poder da web e do ciberespaço como
multiplicador dos estandartes culturais da universalidade
norte-americana degradava este tipo de doutrina. A "Globar
War" contra o terrorismo verteu o axioma sobre a construção
metabólica da hegemonia cultural. Se reabilitou o uso da
violência e da força para construir a ordem mundial. A
desregulamentação global do estado de direito pelo
imperativo da segurança estendeu consideravelmente a área
de ação da propaganda, da manipulação, da desinformação e
da mentira. E se não, da autocensura pelo medo da acusação
maccarthista de "antipatriotismo". Por ocasião da guerra do
Afeganistão e depois do Iraque, o símbolo do globalismo
informacional - a rede de TV CNN - perdeu o monopólio que
exercia desde 1991, durante a primeira guerra do Golfo, na
construção do grande relato sobre o conflito. As televisões
árabes transmitiram outra versão da guerra. O mesmo ocorreu
nos países, como França ou Alemanha, que se opuseram
oficialmente contra a intervenção militar no Iraque. De
forma mais geral, a imagem internacional dos Estados Unidos
deteriorou-se consideravelmente. Não apenas sua mídia mas
também seu modelo de universalidade cultural sofreu uma
crise de credibilidade.
Com a recente invasão das comunicações das Américas podemos
dizer que Rupert Murdoch se transformou em nosso "Grande
Irmão"?
A Fox News de Rupert Murdoch é, de fato, o exemplo desta
situação orwelliana onde um grupo se converte no escritório
de propaganda (e de delação) da Casa Branca para justificar
a invasão. O documentário Outfoxed, de Robert Greewall,
mostra perfeitamente como a mais popular das redes de
informação nos Estados Unidos desinforma e manipula seus
telespectadores. Por exemplo, através das instruções dadas
a cada manhã aos jornalistas. Isto me lembra a atitude dos
diários e revistas do senhor William Randolph Hearst, aliás
"Cidadão Kane", quando, em 1898, entregava a seus
repórteres instruções para "esquentar" a opinião pública
com o objetivo de legitimar o envio da força expedicionária
dos marines à ilha de Cuba. Este acontecimento foi
particularmente emblemático já que é uma das primeiras
notícias reconhecidas pelos historiadores da imprensa como
o momento inaugural da era da "informação internacional".
A indústria cultural, que antes dominava pelo apelo da
fantasia pueril, agora parece arrebatar por doses maciças
de violencia e sexo. A chamada Sociedade da Informação pode
reverter este processo ao atribuir à comunicação um impacto
civilizatório por si?
A própria noção de "Sociedade da Informação" tem uma
trajetória longa e carregada de ambigüidades. Uma fonte
importante de ambigüidades é o determinismo técnico que a
sustenta. O que eu chamo da ideologia da conectividade. Da
conexão técnica por si se supõe que deveria resultar
forçosamente uma sociedade mais justa, mais democrática,
sem "fraturas numéricas", uma civilização mundial que
respeite as culturas. São precisamente estas ambigüidades
que os atores da sociedade civil organizada nos movimentos
sociais estão desmistificando hoje em todos os espaços
institucionais onde se debate os usos das novas tecnologias
da informação e da comunicação, que desenham um tipo de
arquitetura das redes em escala mundial. É o que nos ensina,
por exemplo, a participação destes protagonistas na
preparação da primeira fase da Cúpula Mundial da Sociedade
da Informação que ocorreu em dezembro de 2003, em Genebra,
sob o patrocínio da União Internacional de Telecomunicações
(UIT). Ao postular a necessidade da apropriação social do
universo técnico como componente da democracia e, portanto,
a necessidade de implementar políticas públicas de
comunicação, o movimento social desestabilizava a crença no
determinismo do mercado e da técnica, consideradas como
"novas forças naturais".
Como o senhor vê a evolução das políticas públicas de
comunicação no mundo? Os governos estão reféns da mídia?
Há que se reconhecer que a própria noção de "políticas
públicas" no campo da comunicação e da cultura, como
pregavam os países não alinhados às demandas da Unesco por
uma Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação
(Nomic) durante os anos 70, passou por uma travessia no
deserto nas últimas duas décadas do século passado. As
estratégias de ajuste estrutural e de desregulamentação a
negavam singelamente. Temos que esperar o fim dos anos
noventa e, sobretudo, os primeiros anos deste século para
que o imperativo das políticas públicas volte a ser ouvido
nos debates sobre o ordenamento mundial da comunicação.
Digamos que, mesmo os governos seguindo muito reticentes, a
questão das políticas públicas voltou a se instalar no
centro dos debates sobre a esfera pública. O movimento
social teve um papel importante ao colocar na ordem do dia
esta questão. Eu citava antes o posicionamento do movimento
social na Cúpula Mundial da Sociedade da Informação. Mas
poderia citar a formulação de projetos para a reforma dos
sistemas de rádio e televisão que está emergindo na União
Européia ou em vários países latino-americanos, da
Argentina até o México, passando pelo Brasil. Estes
projetos que desde logo transbordam o movimento social e
tratam de aglutinar todas as forças vivas da sociedade
encaram o problema da crescente mercantilização do campo da
comunicação e da cultura e propõem a necessidade de
repensar tanto o funcionamento do setor privado e do
serviço público como a necessidade de legitimar a
existência de um terceiro setor, composto de meios
comunitários ou associativos, livres e independentes. Isto
significa que os atores da comunicação popular ampliaram
suas perspectivas e já não se conformam só em reforçar suas
redes e seu profissionalismo, mas se convertem num dos
partidos avançados das pressões que tendem a substituir
estruturalmente a organização do conjunto do sistema
midiático e reabilitar a idéia do "público", alinhada com a
declaração das organizações latinoamericanas de comunicação,
reunidas em Quito em julho de 2004 por ocasião do Fórum
Social das Américas: "Privilegiar a defesa e a promoção do
público, porque o público permite o exercício da uma
cultura deliberativa que confronta e aceita diversas
posições para fazê-las dialogar e construir acordos
baseados na discrepância sobre os conflitos que vivemos mas
assumimos". Poderia referir-me também aos esforços
desenvolvidos para instaurar políticas que preservem a
"diversidade cultural" e o pluralismo dos meios. E não só
na produção cinematográfica. Sem cair no triunfalismo,
penso que estão se abrindo novas problemáticas e frentes de
luta no campo amplo da cultura. Em cada um deles, se
assistiu à criação de redes cidadãs tanto em escala
nacional quanto planetária. As iniciativas lançadas pela
rede CRIS ou "Direitos a Comunicação na Sociedade da
Informação" ou a "Coalizão para a diversidade cultural" o
atestam.
Como os povos do mundo podem usar os meios de comunicação
para dominar a mídia?
Temos que pensar na brutal assimetria dos receptores dos
meios frente às empresas de mídia e eternizar contrapoderes
a fim de promover uma "ecologia da informação". É a
filosofia da ação que motivou o lançamento, em 2002, no
segundo Fórum Mundial de Porto Alegre, do projeto de
criação de uma "força ético-moral", encarnada em um
observatório internacional dos meios (Media Watch Global).
Este observatório está destinado a multiplicar-se através
de observatórios nacionais compostos por igual proporção de
profissionais da informação, de todos os tipos de meios; de
universitários e pesquisadores de todas as disciplinas, em
particular especialistas dos meios e da informação; os
usuários e os observadores críticos da mídia e associações
que lhes representam. Este contrapoder não se concebe senão
como espaço de elaboração de uma pedagogia democrática da
apropriação individual e coletiva do universo dos meios e
da comunicação. Se trata de federalizar os múltiplos
espaços e atores que, há anos, realizam um trabalho de
pedagogia crítica dos meios. Seu mérito reside no feito de
ensaiar a tríplice aliança: usuários-cidadãos /
pesquisadores / jornalistas, e corresponde à definição dos
novos movimentos sociais como movimentos de educação
popular. Observar quer dizer decifrar o conteúdo da
informação e analisar sua construção. É também estudar as
causas estruturais dos silêncios da cobertura midiática, a
razão das censuras, das distorções, estar atento a todos os
debates e iniciativas que concernem às estruturas dos meios.
Observar não é só estigmatizar, mas suscitar propostas. A
criação de um observatório internacional como rede de
observatórios nacionais (ou regionais) abre novas formas de
ações comuns.
Existe receita para se democratizar a comunicação? As
tecnologias de informação e comunicação (TIC) são um atalho
para este caminho?
Não existe receita. O importante, me parece, é não se
imolar sobre o altar das últimas tecnologias de informação
e de comunicação. Apropriar-se delas mas sem ceder à
amnésia que nos faz esquecer a longa e rica tradição de
reflexão acumulada pelas experiências de usos populares de
tecnologias anteriores como o rádio por exemplo. O caso da
América Latina neste sentido é muito instrutivo.
Com o surgimento da internet e da televisão por satélite o
senhor continua lendo o Pato Donald do mesmo modo?
Sigo pensando, quase 35 anos mais tarde, que muitas das
análises que Ariel Dorfman e eu fizemos em nosso livro
"Para Ler o Pato Donald", que foi produto dos anos de vida
e resistência no Chile popular, não perderam nada de sua
atualidade. Sigo considerando-o como um manifesto que
incita à rebelião frente a um modo de vida global cuja
ambição megalomaníaca segue hoje sendo a de desdobrar pelo
planeta um sistema de valores particulares como se fosse
universal, o único possível para realizar a felicidade do
gênero humano. Para se convencerem da permanência deste
projeto imperial, eu aconselharia aos cépticos e descrentes
a voltarem a ler o capítulo "Do selvagem bonzinho ao
subdesenvolvido". O que estigmatizamos ali era nem mais nem
menos a arrogância dos poderosos que pensam que a
"redenção" viria do centro. Basta ver hoje como os
discursos tecno-utópicos, que acompanham a expansão da
internet e da televisão por satélite, reciclaram a velha
ideologia "difusionista" segundo a qual a "inovação" ocorre
de cima para baixo. O etnocentrismo está longe de ter
desaparecido do mapa do planeta. A técnica oferece um campo
ideal para ele encontrar um novo disfarce.
Quem é Mattelart Mattelart nasceu na Bélgica em 1936.
Formou-se em Direito e Ciência Política pela Universidade
de Lovaine e, mais tarde, estudou demografia em Paris. Ao
concluir os estudos, recebe uma designação do Vaticano para
realizar estudos sobre política de população. Em 1962 viaja
para o Chile a fim de lecionar na Universidade Católica,
onde casa-se com Michèle e rebela-se contra as políticas de
planejamento familiar da igreja, aproximando-se da
comunicação como campo de difusão da inovação. Ao lado de
sua companheira e de Chonchol Jacques funda o Centro de
Estudos da Realidade Nacional, cujos Cuadernos de la
Realidad Nacional terão participação fundamental no
desenvolvimento das idéias políticas que servem de lastro
para a chegada de Salvador Allende ao poder. É também no
ambiente do centro que Mattelart publica, em 1972, sua obra
mais conhecida - Para Ler o Pato Donald -, escrita em
parceria com Ariel Dorffman, que torna-se um marco na luta
antiimperialista da América Latina e um best-seller entre
os acadêmicos adeptos ao estruturalismo da teoria social
crítica. Com a queda do governo Allende, Armand e Michèle
retornam à França, onde ele passa a lecionar em Paris VII
no final da década de 70. É banido pela onda conservadora e
retorna com a ascensão de Mitterand, desta vez em Paris
VIII, onde leciona até hoje.
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