MPFaponta falhas graves e pede anulação da licença de Belo Monte
Procuradores citam pareceres de técnicos do próprio Ibama: se for construída do jeito que está, usina pode secar 100 km de rio e comprometer a água e o alimento das populações
O Ministério Público Federal ajuizará amanhã (quinta, 8) açãocivil pública na Justiça Federal de Altamira, pedindo a anulaçãoda licença prévia da usina hidrelétrica de Belo Monte, concedidapelo Ibama. Os procuradores da República que analisaram oempreendimento apontam afronta à Constituição, às leis ambientaise às resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente entre osoito problemas encontrados no licenciamento até agora.
O MPF também quer o cancelamento do leilão marcado para o próximodia 20, porque o governo desobedeceu uma das exigências do Conamapara licitação de usinas hidrelétricas. O projeto só pode ir aleilão depois que for emitida licença de instalação, nunca apenascom licença prévia. É o que diz a resolução nº 06/1987,claramente desobedecida pela urgência de vender Belo Monte ainda em2010.
Ospedidos para a Justiça incluem também uma proibição para o Ibama,para que qualquer nova licença só seja concedida se corrigidostodos os vícios e dúvidas apontados no processo de licenciamento. OMPF irá, ainda, notificar oito pessoas jurídicas potencialmenteinteressadas no empreendimento a respeito dos termos da ação, paraque evitem cooperar com os danos e ilegalidades descritos, porquepodem ser considerados co-responsáveis. Entre os notificados, oBNDES e as três maiores empreiteiras do país (vejalista abaixo)
OMPF descobriu, analisando o material do Ibama, que os própriostécnicos do governo deixaram claro, em vários documentos, seudesconforto com a falta de dados científicos que garantissem asegurança ambiental do projeto. A pressa em conceder a licençaatropelou não só ritos legais e princípios democráticos, masatentou contra o postulado da precaução, essencial para evitardesastres ambientais.
Dentreas principais dúvidas está o respeito à biodiversidade e àsobrevivência da população da chamada Volta Grande do Xingu, umtrecho de 100 quilômetros do rio que vai ser desviado para produzirenergia na barragem. Uma das principais questões do licenciamento deBelo Monte diz respeito à quantidade de água que vai ser liberadapara “irrigar” esse trecho, batizado pela Eletrobrás de Trechode Vazão Reduzida.
Pelaproposta inicial da Eletrobrás, esse trecho, onde moram pelo menos12 mil famílias, incluindo os povos indígenas Arara e Juruna, seriairrigado com 4 mil metros cúbicos por segundo, ou 8 mil m3/s, emanos alternados. Os técnicos do Ibama consideraram 4 mil m3/s umaquantidade irrisória de água, que poderia comprometer a vida naregião. E acabaram por emitir a licença condicionada a um teste:durante seis anos, serão liberados 8 mil m3/s e, ao fim desseperíodo, os danos ambientais serão reavaliados.
“OIbama fala em testar um hidrograma com essa quantidade de água, maso meio-ambiente e a vida da população do Xingu não tem comodepender de testes. Se não há certeza científica sobre o projeto,ele não deve ser levado adiante. Isso é um princípio ambiental doqual a sociedade não pode abrir mão”, diz o procurador daRepública Cláudio Terre do Amaral, de Altamira, um dos responsáveispela análise.
Parapiorar o cenário para os moradores do Xingu, técnicos do MPFdemonstraram que nenhuma das duas fórmulas – nem a do Ibama, nem ada Eletrobrás - condiz com a realidade. Eles analisaram o volume deágua do Xingu em uma série histórica de 1971 a 2006. Consideraramque as turbinas só irão gerar energia se, por elas, passarem 14 milm3/s de água. Somaram a esse volume os 8 mil m3/s exigidos peloIbama para chegar ao volume de 22 mil m3/s, o necessário paraconciliar energia e manutenção da vida. O MPF descobriu que, nos 35anos observados, em 70% do tempo o rio não foi capaz de alcançaresse volume nem na época de maior cheia.
“Seo Xingu não tiver água suficiente para gerar energia e, ao mesmotempo, manter o volume exigido pelo Ibama, nos perguntamos o que serásacrificado, se a geração ou a vida das populações. Com umadúvida dessa magnitude, como o empreendimento pode ser consideradoviável?”, questiona-se o procurador da República UbiratanCazetta.
Poucaágua ou água de má qualidade
Alémda ameaça de, literalmente, faltar água para a vida na VoltaGrande, na análise dos documentos do licenciamento fica evidenteoutra dúvida científica igualmente grave, quanto à qualidade daágua no trecho do rio que vai ser transformado em lago.
Emdocumento que entregaram ao Ibama no dia 27/01, quatro dias antes daemissão da licença prévia, especialistas da Universidade deBrasília ressaltaram que era necessário mais tempo para concluirsobre a qualidade da água depois da construção, por haverevidências de toxicidade para peixes e humanos.
“Osanalistas são de opinião que não haja nenhuma decisão no momentoem relação ao empreendimento e sugerem que seja dado um tempo maiorpara a realização de qualquer futura análise”, dizem nodocumento. Mas foram ignorados pelo Ibama que, na licença, colocou aquestão como uma das condicionantes mais vagas: “Deverá sergarantida a qualidade da água”.
Nãoforam só cientistas da UNb que foram ignorados. Num esforçoinédito, 39 cientistas de várias instituições brasileiras sereuniram para analisar criticamente o empreendimento de Belo Monte eapresentaram ao Ibama, durante as audiências públicas, um arrazoadode conclusões que não foram levados em consideração. “Nãoanalisamos as contribuições das audiências públicas”, admitiramos técnicos em um dos últimos documentos emitidos antes da licença.
Semprecedentes
OMPF aponta também o desrespeito ao artigo 176 da Constituição, quedetermina que aproveitamento de potencial hidráulico em terrasindígenas só poderá ser feito se houver lei específicaregulamentando a questão. O legislativo brasileiro nunca tratou dotema. E, até agora, o governo brasileiro nunca tinha tentado fazeraproveitamento de potenciais hídricos em terra indígena
“BeloMonte é, também desse ponto de vista, um empreendimento semprecedentes. E, para o MPF, nada pode continuar enquanto não secuidar das lacunas legais. O aproveitamento hidrelétrico em terrasindígenas está na mesma categoria que a exploração mineral. Nãopodem ser autorizados enquanto não se regulamentar esses temas”,explica o procurador da República Bruno Gutschow, de Altamira.
Parao MPF, ao liberar a licença ambiental com tantas dúvidas e riscos,o governo resolveu apostar e deixar para apurar depois se oempreendimento é de fato viável. “Isso significa, de modoinconstitucional, prestar absoluteza ao princípio do“desenvolvimento econômico” e ignorar vigência ao princípioconstitucional do desenvolvimento sustentável”, diz a ação civilpública que a Justiça vai conhecer amanhã.
Aação é a primeira consequência da análise que seis procuradoresda República fizeram sobre os documentos do licenciamento, osfundamentos legais e as consequências da obra para as populaçõesindígenas e não-indígenas do rio Xingu. O grupo continuaanalisando os documentos do empreendimento e novas ações judiciaisnão estão descartadas.
Vejaabaixo, uma por uma, as irregularidades encontradas até agora peloMPF:
1– É a primeira vez que um empreendimento afeta diretamente terraindígena, aproveita recurso hídrico de terras indígenas e aConstituição exige, no artigo 176, que esse tipo de aproveitamentosó poderá ser autorizado pelo poder público após edição de leisordinárias regulamentando a questão, o que não existe noordenamento jurídico brasileiro.
2– A equipe de técnicos que fez o licenciamento consignou em um dosdocumentos públicos: “Não foi feita análise das contribuiçõesdas audiências públicas”. A Constituição Federal determina queo Brasil, enquanto estado democrático de direito, deve garantir aparticipação popular. E no caso de um licenciamento, essaparticipação não pode ser meramente formal. Fazer audiênciapública e ignorar o que o público disse é contrário aosprincípios democráticos. No caso específico de Belo Monte, ignorara sociedade é ainda mais lamentável porque, pela primeira vez,cientistas de várias instituições se reuniram para analisar oprojeto e contribuir com o licenciamento, mas não foram consideradosdevidamente.
3– Princípio da precaução: na dúvida sobre impactos graves, oempreendimento não pode ser executado. Belo Monte deixou dúvidasquanto ao hidrograma previsto para os 100 km da volta grande queserão afetados pelo desvio do rio. A Eletrobrás propôsinicialmente uma vazão que seria de até 4000 m3/s em um ano, e de8000 m3/s no ano seguinte. O Ibama condenou esse hidrograma. Mastampouco têm certeza sobre o hidrograma que propôs, qual seja, de8000 m3/s em todos os anos. O Ibama fala em “testar” essa vazãodurante seis anos e depois avaliar os impactos. Não é possívelfazer “testes” desse tipo quando se trata de questão ambiental,ou se tem certeza do que vai acontecer ou o projeto não pode ir parafrente.
4– Qualidade da água: outra incerteza que fica evidente na análisedos técnicos do Ibama é sobre a qualidade da água se a usina forconstruída. Em vários pontos, os responsáveis pelo licenciamentose dizem preocupados com projeções de toxicidade para humanos epeixes. Falam em “impacto de grande magnitude possivelmenteirreversível”. Em parecer do dia 27/01 (quatro dias antes dalicença ser concedida), especialistas da Universidade de Brasíliarecomendaram que se aguardasse mais tempo antes de qualquer decisãosobre o empreendimento, para que novas análises sobre o temapudessem ser feitas. Os próprios analistas do Ibama, em 29/01,portanto dois dias antes da emissão da licença, reconheceram afalta de dados e disseram que o tema estava pendente. Mesmo assim, alicença foi concedida e a questão entrou como condicionante.
5– Obrigação de avaliar medidas mitigadores. Uma vez identificadosos impactos negativos, o governo só pode liberar um empreendimentose analisar as medidas propostas pelo empreendedor para mitigar oucompensar esses impactos. Resolução do Conama especificamentedetermina isso. No caso de Belo Monte, as medidas de compensaçãonão foram apresentadas antes da licença prévia. Se, por exemplo,as barragens começarem a formar poças no leito do rio e a populaçãode mosquitos se proliferar, ninguém tem um plano para evitar oaumento dos casos de malária.
6– Trecho de Vazão Reduzida. O MPF analisou dados da AgênciaNacional das Águas que demonstram que são inconciliáveis osinteresses econômicos/energéticos e ambientais. O rio Xingu, em 35anos analisados, só alcançou 22 mil m3/s de volume em 6% dos dias.Se são necessários 14 mil m3/s para produzir energia e, pelo menos,8 mil m3/s para manter a vida nos 100 km do trecho de vazãoreduzida, fica evidente que a usina vai impor uma escolha absurda: ouse sacrifica a Volta Grande ou se sacrifica a geração de energia.
7– Desobediência à resolução nº 006/1987 do Conselho Nacionaldo Meio Ambiente. A resolução do Conama é auto-explicativa.Leilão, só depois da Licença de Instalação. O governo nãoesperou e agora poderá ser obrigado pela Justiça a cumprir a regrado jogo.
8– Necessidade de reedição da Declaração de Reserva deDisponibilidade Hídrica. A Agência Nacional das Águas tem que“conceder” a água necessária para a geração de energia,porque se trata de um bem público. A ANA deu a concessão antes dalicença prévia e, portanto, esse documento não prevê o hidrogramaque foi alterado pelos técnicos. Seria necessária uma novaconcessão da Ana, com as mudanças previstas pelo Ibama.
Vejaquem pode ser notificado judicialmente da tramitação da ação eque poderá ser responsabilizado por dano ambiental:
BancoNacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
ConstrutoraNorberto Odebrecht S.A.
Construçõese Comércio Camargo Corrêa S/A
AndradeGutierrez S/A
CompanhiaVale do Rio Doce
J.Malucelli Seguradora S/A
FatorSeguradora S/A
UBFSeguros S/A
Procuradoria da República no Pará
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