Integração, soberania alimentar e energética

2008-09-01 00:00:00

Na manhã deste sábado (30), foi realizada no auditório do Sesc, em Belo Horizonte, a terceira plenária do Encontro Nacional de Mulheres em Luta por Soberania Alimentar e Energética. Sob o tema Integração, soberania alimentar e energética e economia feminista quatro painelistas discutiram os temas com cerca de 500 mulheres que participam do Encontro, são elas: Cláudia Smith, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Juliana Malerba, representante da Fase e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, Noeli Krefta, do Movimento das Mulheres Camponesas e Sarai Brixner, do Movimento dos Pequenos Agricultores.
 
Apresentações - A centralização das formas de produção de alimentos e de energia na América Latina, iniciada com o processo de invasão e colonização européias, teve efeitos desastrosos para as populações locais. Ao longo dos séculos, o saber dos camponeses e camponesas, caracterizado por práticas ecológicas, integradas, complexas e diversificadas, foi sendo desvalorizado. Essa herança opressora ganhou força no capitalismo atual. Nas décadas de 1960 e 1970, o pacote da chamada “revolução verde” incentivou o monocultivo e a concentração de terra, propagou a mecanização da produção e a utilização de venenos agrícolas, os agrotóxicos, sob o pretexto do aumento da quantidade de alimentos para saciar a fome no mundo.
 
Se essa é uma dura realidade que passa a caracterizar o campo, nas cidades aumenta o consumo de comidas industrializadas, modificando e pasteurizando hábitos alimentares.
Os dados acima foram apresentados por Cláudia Smith, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), durante a plenária. Cláudia destacou que com a revolução verde a energia se tornou um bem, comprado e vendido no mercado, passando a existir separado do sistema produtivo.
 
Hoje, nos Estados Unidos, para cada unidade de energia produzida na forma de alimentos, são necessárias 10 unidades, o que mostra um modelo insustentável de produção. Na Argentina, a superfície destinada ao plantio de comida é gradativamente reduzida, abrindo espaço para a produção de commodites, especialmente a soja para exportação.
 
Ao contrário do que apregoava seus defensores, a revolução verde não resolveu o problema da fome. Segundo a FAO, existem no mundo 194 milhões de pobres, dos quais, 71 milhões vivem em pobreza extrema, sem acesso a alimentos, em quantidade e qualidade suficientes, nem a meios de produzi-los, como a terra.
 
Uma série de fatores combinados vem gerando uma crise alimentar global. Entre esses fatores destacam-se: o aumento da demanda por comida, encabeçada principalmente pela Índia e a pela China, países de grande contingente populacional; a elevação dos custos do petróleo incentivando, principalmente no Brasil, a adoção de políticas de produção de agrocombustíveis em detrimento da produção de alimentos.
 
Dessa forma, a área agricultável no País é disputada por setores historicamente antagônicos: o sucroalcooleiro, voltado para a monocultura extensiva de cana-de-açucar para a produção do etanol - que irá abastecer o mercado externo, notadamente os Estados Unidos; e os camponeses e camponesas, que produzem alimentos para a mesa da população brasileira.
 
Na contramão desse modelo, alguns países latino-americanos estão encontrando alternativas. “A Venezuela, que até pouco tempo importava 70% dos alimentos consumidos, adotou uma política de reforma agrária e retomou o papel do Estado como ente regulador do abastecimento. A Bolívia adotou uma reforma agrária voltada para a reconquista das terras pelos povos indígenas e optou pela agricultura ecológica. Já em Cuba, a transição para um modelo agrícola de baixo consumo de combustíveis fósseis e a prática da agricultura urbana vêm dando o tom da mudança no cenário do continente americano”, explica Cláudia.
 
Integração - Entretanto, políticas de integração energética na América do Sul, que sejam capazes de superar as desigualdades no continente e que dêem autonomia a região frente ao mercado externo devem ser defendidas pelas populações dos países, acredita Juliana Malerba, representante da Fase e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, a segunda painelista dessa manhã.
 
Para ela, essa integração sofre limitações que vêm da intervenção neoliberalista. Incentivo a privatização das estatais, substituição de empresas locais por internacionais, implantação de uma política agroexportadora, estabelecimento de metas de crescimento econômico associadas à competitividade foram condições impostas para inserção do países na economia globalizada. Segundo Juliana, esses elementos complexificaram a integração e violaram direitos.
 
Ela cita como exemplo o loteamento de quase 70% da Amazônia peruana para a exploração de petróleo, uma área onde vivem populações tradicionais que serão diretamente afetadas pela produção de energia fóssil destinada à exportação para o hemisfério norte, especificamente os Estados Unidos. Contraditoriamente, os povos dessa região ainda utilizam a biomassa, ou seja, lenha para a produção de energia. Em toda a América Latina, cerca de 45 milhões de pessoas não têm energia elétrica.
 
Juliana provoca afirmando que a tarefa dos movimentos e organizações sociais é fazer a crítica constante de quem ganha e quem perde com o modelo energético vigente no campo e na cidade. E completa dizendo que, para a soberania dos povos, a plataforma energética deve ser centrada no entendimento de que “energia não pode ser mercadoria, mas direito”.
 
A plataforma a ser construída para a soberania energética deve defender o acesso universal a energia, criticar o padrão de consumo dominante, garantir justiça ambiental, criticar o sistema agrícola industrializado e combater a defesa de soluções de mercado e modernização tecnológica para solução da crise ambiental. A produção de energia pelos grupos territoriais para o uso local é uma importante ação no conceito de soberania energética.
 
Na construção da soberania energética, há vários desafios a serem enfrentados, alguns deles foram apresentados por Juliana, como a radicalização da democracia; o fortalecimento das articulações e alianças internacionais; a organização popular para influenciar a política de empresas estatais, o uso da renda petrolífera e a definição de fundos públicos.
 
Durante a plenária, algumas alternativas para a crise energética foram apresentadas. Juliana Malerba ressalta que as mudanças climáticas representam uma possibilidade de configurar as lutas populares contra o modelo energético vigente e ganhar força para estas alternativas, buscando-se a justiça climática. A resignificação do papel da agricultura como produtora e consumidora de energia e a construção de conceitos como soberania alimentar e energética são também possibilidades citadas por Juliana. Ela conclui dizendo que neste contexto, as lutas de resistência são fundamentais e afirma que “quem não tem alternativa para a crise energética não somos nós, mas as grandes empresas e o modelo vigente”.  
 
Soberania alimentar e economia feminista – Os efeitos da crise energética, ambiental e de valores causadas pelo modelo de desenvolvimento capitalista atingem principalmente a vida das mulheres. A sociedade capitalista e patriarcal, calcada na propriedade privada, na divisão de classes, na concentração de riqueza, exploração da força de trabalho e bens naturais, no lucro, alienação, violência e dependência, subjulga e oprime as mulheres através da violência, do controle do corpo, da dependência econômica, da falta de oportunidades na participação das mulheres nos espaços de poder e mesmo dentro de casa. Noeli Krefta, do Movimento das Mulheres Camponesas, foi a terceira painelista da plenária e trabalhou, principalmente, a soberania alimentar e o papel da mulher nesta luta.
 
A agricultura camponesa produz 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros, sendo as mulheres as maiores responsáveis por esta produção. Noeli ressalta que elas são quem detêm o conhecimento e o saber popular no cultivo, o preparo e conservação da produção. As mulheres estão no manejo e cultivo do solo, na produção diversificada de alimentos, são responsáveis pela conservação e preservação das plantas frutíferas, flores e embelezamento da casa, pela conservação e preservação das plantas medicinais, pela criação de animais, fabricação de conservas e doces, pelo cuidado com os doentes, idosos e crianças.
 
As mulheres realizam um trabalho que gera renda, mas não gera dinheiro, por isso não é um trabalho reconhecido, nem valorizado em nossa sociedade. Esse trabalho invísivel está diretamente relacionado à soberania alimentar, que, de acordo com Noeli, tem caráter político e questiona as expressões do sistema capitalista. Ela define soberania alimentar como direito de nos alimentarmos, com qualidade e em quantidade suficiente; o direito de produzir e consumir alimentos diversificados e saudáveis; direito de conservar e preservar a cultura produtiva de auto-sustento e renda; direito das camponesas de planejar a produção e as políticas agrícolas sem imposição e intervenção do estado ou das transnacionais; de acesso a terra e aos meios de produção.
 
“Soberania alimentar tem a ver com o reconhecimento do trabalho das mulheres”, afirma Noeli, que também relaciona esta soberania à reforma agrária e permanência dos camponeses e camponesas na terra. Para isso, ela afirma ser necessária novas relações de cuidados e preservação dos biomas; defesa do território, com enfrentamento das transnacionais; um comércio justo e solidário entre os povos; a proteção e cuidado com a água; novas relações sociais de gênero, etnia, geração, opção sexual; que a ciência e a pesquisa estejam a serviço e promoção da vida e do bem comum; a luta de enfrentamento ao agronegócio e controle da biodiversidade; reconhecer e visibilizar o trabalho das mulheres.