A Conferência Nacional de Comunicação – desafios e limites
Um clima de alegre euforia toma conta dos lutadores sociais que ao longo dos últimos anos vem atuando no campo da “democratização da comunicação”. Tudo isso porque o governo federal, depois de enfrentar acirrada luta, finalmente marcou a conferência nacional do setor. O processo já começou e vários estados estão fazendo suas conferências, cujas propostas desembocarão na nacional em dezembro. Temas polêmicos e quentes estão na pauta: uma nova regulamentação para a concessão de rádio e TV, regulamentação do uso destes veículos, revisão da lógica monopolista dos meios, definição de programação local, regulamentação da profissão jornalista, e outros tantos.
Mas, para nós, falar de democratização pressupõe uma anterioridade: discutir de forma muito clara o que vem a ser esse conceito. O que significa democratizar a comunicação no bojo de um Estado capitalista, em que o mando efetivamente não está na mão dos legisladores ou do governo federal? Como democratizar um campo de ação de um Estado que é dirigido, em última instância, pelo capital monopólico? Responder a estas questões é fundamental para que possamos perceber os limites da luta por “democratização” e também as possibilidades que surgem ao debater outra forma de ser Estado, no sendero de outros povos que estão fazendo esse movimento hoje, como a Venezuela, a Bolívia e o Equador.
Lênin lembra muito bem no seu texto A revolução proletária e o renegado Kautsky: “É sempre muito natural para um liberal falar em democracia em geral. Mas um marxista nunca se esquecerá de colocar a questão: para que classe?” Porque Lênin sabia muito bem que a democracia tem vários matizes e ela nunca de fato existiu na sua forma pura. Sempre há que se observar o adjetivo. Democracia liberal, democracia burguesa, democracia participativa. Bueno, isso nos coloca outra questão: quando falamos em democracia na comunicação, qual é o adjetivo que a acompanha? Ou qual perspectiva de classe a que estamos apontando?
Controle Social
Uma das propostas que estão na mesa é o controle social dos meios de comunicação. Olhando assim soa bem. Mas o que significa? Que quem controlaria o setor seria o povo? O que é esse controle social? Quem faria parte de uma Câmara, ou Conselho, quem definiria as políticas públicas da comunicação? Aí voltamos a refletir sobre o Estado que temos. E, para isso, basta que passemos os olhos pela conformação da própria Conferência Nacional. Quem é maioria ali? A quem representam? Se o Estado brasileiro vem se notabilizando por estar a serviço das grandes multinacionais, dos oligopólios, dos monopólios, não estaríamos já entrando num jogo perdido, a considerar a correlação de forças?
Um setor que já avançou na discussão do controle social é o da Saúde. Os Conselhos de saúde municipais e estaduais buscam concretizar essa “democratização” e há muitos lutadores sociais envolvidos, fazendo o embate cotidianamente. Mas, qualquer um que já tenha participado de um Conselho (e eu já participei) sabe dos limites estreitíssimos deste processo. Avança-se um passo e voltam-se cinco. A maioria dos conselheiros está bem afinada com o status quo e a batalha é quase insana. Bom, mas não há avanços? Sim, há. Pouquíssimos. Mas o que tratamos de fazer aqui é apontar os limites. Não dá para acreditar que o simples estabelecimento de uma lógica de controle social possa mudar tudo. Até porque os conselhos são consultivos. Eles apontam caminhos que podem ou não ser acatados pelos governos.
O Estado democrático brasileiro
Ruy Mauro Marini tem um texto magnífico no qual sistematiza o modo de operação de um estado contra-insurgente, típico dos tempos da ditadura. Ele mostra como as ditaduras na América Latina fizeram parte de um projeto dos Estados Unidos na luta contra o socialismo. E fala da doutrina da contra-insurgência que apresentava os seguintes pontos: aniquilamento dos inimigos (os comunistas), conquistas de bases sociais e institucionalização. Tudo isso foi encaminhado aqui nesta parte do continente e aí está a história para comprovar.
Naqueles dias, de 1959 em diante, depois do triunfo da Revolução Cubana, esta foi a doutrina que balizou o poder nos Estados latino-americanos. Além disso, durante esse processo, aconteceram mudanças econômicas e políticas importantes na periferia do capitalismo. O sistema de produção da burguesia nacional se alia ao imperialismo e surge um Estado no qual a preocupação maior era olhar apenas para os interesses do capital monopólico nacional e estrangeiro. Este Estado também passa a usar o exército como a força bruta que travava e impedia a ação dos movimentos sociais. É, no dizer de Marini, o Estado corporativo burguês monopólico.
Depois, com a mudança de política dos EUA, vem a famosa “democratização”, na qual a proposta era a transição lenta e gradual para um tipo de estado que apresentasse uma democracia viável. E o que isso quer dizer? Que poderia haver uma abertura política, mas com a manutenção de alguns mecanismos que garantissem o não crescimento dos movimentos sociais e a impossibilidade do socialismo.
E foi o que se viu. O regime abriu, vieram as eleições diretas, o povo pode votar, os partidos vieram à luz, o parlamento se reorganizou, mas concretamente várias formas de controle, foram renominados e reinventados, evitando movimentos de transformação.
Vamos pensar. O parlamento, democraticamente eleito de quatro em quatro anos, representa quem? Quantos lá dentro verdadeiramente representam os interesses das gentes brasileiras? Numa queda de braço entre os interesses do povo e os da elite nacional, dentro do parlamento, quem ganha? Qual o controle que o povo tem destes senhores e senhoras? E sobre as inúmeras maneiras de amortecimento da luta social, o que se pode falar? No atual governo, particularmente, tivemos uma revoada de lideranças sociais e sindicais que abandonaram a radicalidade revolucionária para caminhar sob o domínio da cartilha da política palaciana. Silêncio sobre o agronegócio, sobre a ação das multinacionais, sobre a ocupação do Haiti. Aprovação da intervenção do Estado e dos empresários na organização das lutas sindicais. Houve um amortecimento das grandes lutas.
E os poucos que ainda se insurgem contra a ordem dos monopólios, do capital financeiro e contra a super-exploração recebem o quê? O braço armado da lei. São presos e criminalizados. A luta social vira caso de polícia, como nos anos 60 era caso de segurança nacional. Então, percebem? Mudou o nome e o perfil da força bruta, mas ao que parece a doutrina de contra-insurgência inventada pelos EUA ainda segue vigente. Trata-se de aniquilar o inimigo, vencer todas as suas forças e manter o sistema azeitado para que as multi, mega, trans empresas sigam dominando.
Soberania comunicacional
Dito tudo isso, qual tese estamos então querendo defender? A da negação da conferência? Não. Em absoluto. A Conferência é importante e pode, inclusive, comprovar, grande parte da análise que busco desenvolver por aqui. É importante que os lutadores sociais descerrem todos os véus. Não há espaço para ingenuidade na luta política. Deste encontro que vai se replicar em cada estado brasileiro, afunilando no encontro nacional, é preciso decifrar todos os limites, os empecilhos, as impossibilidades. E, fundamentalmente, é necessário encontrar as possibilidades de avanço. Mas, quando falo avanço, não digo a melhoria de um estado de coisas que é ruim e que “frankstenianamente” poderia apresentar uma ou outra faceta democrática.
A proposta que apresentamos é da luta por soberania. Como muito bem já apontou o genial Ruy Mauro Marini “falar em democracia é falar de autodeterminação”. Ou seja, a democracia que almejamos deve atender as exigências da maioria do povo e não de um pequeno grupo dominante. Ela tem o recorte de classe e pressupõe um Estado cujo povo seja soberano, e por conta disso, possa transferir soberania ao Estado para que este seja independente de fato. Daí nossa consigna ser “por soberania comunicacional” e não apenas a democratização dos meios.
A democracia, se pensada dentro dos marcos da democracia burguesa, significa apenas a possibilidade de uma maior variedade de oferta, avançando um pouco no controle social, sempre com minoria. Já a soberania comunicacional pressupõe uma democracia radical, participativa, em que a participação seja direta e as pessoas possam efetivamente partilhar das decisões acerca do que se ouve, lê e vê neste país. Soberania na comunicação significa não arranjar esse modelo que aí está, mas construir, coletivamente, outro modo de comunicar. Esse é um processo muito mais comprometido e radical e, acreditamos, é para ele que devemos avançar.
A idéia de soberania comunicacional que hoje invade o mundo expressa justamente a questão do direito real à comunicação, não só a receber informação, como controlar e produzir. E isso coloca também um embate junto à categoria dos jornalistas. A ênfase na produção de comunicação popular tem levado muitos jornalistas a questionar o fato de gente sem habilitação produzir vídeos, rádio e até material gráfico. Esse é um debate intenso, principalmente na Venezuela, onde este conceito tem caminhado com mais concretude. Mas, aí, também é bom que as pessoas separem o direito de comunicar com a técnica do jornalismo. Veículos como jornal, televisão, rádio e internet, apesar de terem muito espaço jornalístico, não são feitos só de jornalismo. Uma novela é uma forma de comunicação, um programa de variedades é uma forma de comunicação, uma conversa com pessoas é uma forma de comunicação, vídeos feitos para narrar a reprodução da vida nas comunidades, as festas, os costumes, são outras formas de comunicar. Não são necessariamente jornalismo. O jornalismo é um jeito de narrar que pressupõe análise, conhecimento histórico, impressão, focos narrativos, contexto, conhecimento sobre linguagem, signos etc.
De qualquer forma, para além das lutas corporativas que também são necessárias, a população precisa saber que discutir soberania comunicacional é, em última instância, debater soberania em todos os níveis, avançando para outro tipo de estado, socialista, até que o fim de todas as classes nos permita entrar num outro período civilizacional.
E a vida prática?
Mas, construir essa soberania na comunicação e nas demais instâncias da vida do país não é coisa que se faça por meio de mágica. É preciso trabalho real, na vida mesma, nas comunidades, juntos aos movimentos sociais, porque a sede da soberania, como bem ensina Enrique Dussel , é o povo organizado. Isso significa que muitos dos engravatados que andam por aí a debater democracia, nos inumeráveis encontros em salões acarpetados, precisam voltar a atuar na base, na caminhada diária junto aos estudantes de comunicação, aos lutadores sociais. É preciso que se estude a realidade, a condição do Estado, as forças que estão em combate. É preciso conhecer os limites da nossa ação e ser capaz de ultrapassá-los, sempre na senda da construção de um país soberano de fato, livre das amarras do capital, no qual seja verdadeiramente possível um controle social que atenda as exigências do povo em sua maioria. Isso significa trabalho, muito trabalho. Há que começar. Até que aconteça aquilo que diz Fidel, a hora em que “el pueblo crea en el pueblo y todo empiece a cambiar”.
- Elaine Tavares é jornalista. www.eteia.blogspot.com - www.iela.ufsc.br