OMC: Roteiro previsível de um desenlace anunciado

2005-12-21 00:00:00

Com o roteiro previsível de mostrar a unidade entre seus 150 membros, anunciando alguma conclusão comum, ainda que o tema central tenha sido posposto para um Hong Kong II em Genebra 2006, concluiu a “VI Reunião Ministerial da OMC” (13 a 18 de dezembro). E o fez no meio do desconcerto da maioria de membros participantes pelos resultados da mesma e numa cidade sacudida pela militarização, aplicada para “proteger” a sede das vozes cidadãs de resistência, que mereceram de longe maior eco do que as conclusões do conclave.

Mas a versão oficial diz que a reunião não fracassou esta vez, mas que obteve lucros modestos, pois não reeditar o colapso de Cancún (2003) e não jogar lenha ao fogo nas dúvidas sobre a viabilidade da estratégia OMC, eram considerados desde o início como potenciais lucros.

Os anúncios de eliminar os subsídios às exportações agrícolas até 2013; de liberar uma quota de imposições (duty free) para 97 produtos das 50 nações mais pobres; e de suspender até o 2008 os subsídios à exportação algodonera dos Estados Unidos, que foram apresentados como os lucros da reunião, estão longe de constituir a conclusão da Ronda de Doha, chamada de desenvolvimento, que era o primeiro motivo da reunião e que foi posposto até abril de 2006.

Doha colocou a agenda de: a promoção do desenvolvimento sustentável; a redução da pobreza e incremento do emprego; as melhoras na governabilidade internacional; e o crescimento econômico, especialmente dos países em desenvolvimento, objetivos que deviam, paradoxalmente, encaminhar-se através da adoção de medidas para melhorar o comércio e o investimento mundial. Segundo as conclusões da VI Reunião, todos estes grandes temas pendentes deverão encaminhar-se nos próximos quatro meses.

Para muitos dos países chamados pobres, a concretização da mencionada Ronda é indispensável para sua inserção plena não só nas dinâmicas da OMC senão naquelas do mercado e suas concorrências. Mas a principal inconveniência radica em pretender que o desenvolvimento poderá conseguir-se através dessa via.

Ainda sob essa perspectiva, a disparidade entre os países membros é a pedra angular das dificuldades. O pechincho por peças entre economias que não têm o mais mínimo equivalente, como é o caso da produção algodonera que enfrentou aos mais pobres de África do Oeste (Benin, Burkina Fasso, Chade e Mali), congregados no Grupo dos 4 –G4- com os Estados Unidos, demonstra que a liberdade comercial não pode extrair-se das disparidades estruturais e históricas. Neste caso, se os primeiros pediram que os Estados Unidos retirassem seus subsídios às algodoneras domésticas, cujo dumping põe em perigo a existência dos pequenos, mal conseguiram que até 2008 o gigante do algodão só suspenda os subsídios à exportação.

Por esse mesmo motivo, depois de mais de 100 horas de discussões, a reunião se manteve entorpecida na abordagem do tema das tarifas das importações agrícolas e a eventual abertura dos mercados dos grandes aos produtos dos países em desenvolvimento. Pois o ardor com o que protegem sua agricultura doméstica da concorrência internacional os Estados Unidos, a União Européia e Japão, dista muito do ultimato de libertação total que estes querem impor aos outros.

Estas inconsistências, chamadas de estratégias de negociação, afastam a possibilidade dos consensos e propiciam as imposições de força. Assim por exemplo, enquanto o Grupo dos 20 países em desenvolvimento -G20-, liderado por Brasil e a Índia, iniciou a reunião com a postura de não adiantar sobre liberalização de serviços e comércio de bens manufaturados se não se avançava em agricultura, a União Européia em mudança postulou que não fará concessões em agricultura se os países em desenvolvimento não fazem o próprio em serviços e bens industriais.

É claro que para isso se esqueceu que se supunha que a Ronda de Doha devia colocar ao centro a oportunidade para que, justamente, os países em desenvolvimento pudessem incrementar suas oportunidades de competir, entre outros superando a pobreza.

Não obstante, o G20 aceitou o documento final com pretextos de unidade, ao igual que o fizeram o Grupo dos 90 (países pobres) e o dos 33 (sobre produtos especiais em agricultura). O chanceler brasileiro, Celso Amorim, sustentou esta mudança de rota na necessidade de fazer compromissos para desbloquear o processo, e mais ainda se mostrou entusiasta com as conclusões sobre agricultura, uma área de grande preocupação para os países pobres. ”Não só temos uma data para terminar com os subsídios senão também um acordo sobre as subvenções às exportações agrícolas, a maioria do qual deverá realizar-se até 2010”, disse.

Sobre serviços, que é outro dos capítulos polêmicos, a tónica dos debates pode ilustrar-se pelas discussões sobre o controvertido “Anexo C”, entre cujas propostas figurava a possibilidade de que um país possa ser obrigado a responder a pedidos comerciais de grupos ou países, ainda que não queira ou não lhe interesse a proposta. Venezuela encabeçou a oposição a tal desatino, o Grupo dos 90 a atenuou num texto alternativo, e Cuba, Filipinas e Venezuela deixaram sentada sua preocupação sobre o controversial rascunho, cujos desenvolvimentos são parte do postergado.

Em soma, se há que resgatar algo do desenvolvimento da reunião em questão é a manutenção das alianças entre países do Sul, que conquanto não expressam desacordos de fundo com a proposta da OMC, pelo menos permitem um verdadeiro balanço geo-político. Ao respecto o ministro de comércio indiano Kamal Nath, assinalou que o maior lucro dos países em desenvolvimento é o de manter e mostrar sua unidade. “Não estamos tratando de criar uma confrontação Norte/Sur, mas esta unidade entre os países do Sul é indispensável para a manutenção do multilateralismo”, assinalou.

A resistência desde o fundo

Para a Via Camponesa, movimento que encabeça a resistência frente à OMC, o principal problema de Doha e dos tropeços da OMC radica em colocar ao mercado como o gestor do desenvolvimento e líder da chamada globalização, ou em outras palavras de colocar à humanidade ao serviço do capital, diz seu coordenador, o indonésio Henry Saragih.

Daí que a resistência que os movimentos sociais expressam é um assunto de fundo, tem que ver com o que não é negociável: as pessoas, os povos, o médio ambiente, o planeta e a vida, que não podem ser postos em leilão comercial, como sucede com a proposta sobre agricultura em curso. Pois ao impulsionar uma visão mercantil da agricultura, a OMC põe em perigo a própria viabilidade do modo de vida camponês para transformá-lo numa simples indústria de produção de alimentos sem campesinado.

Isso explica o por que da resistência frontal deste movimento frente à OMC, que se expressou em Hong Kong e previamente em Cancún, Seattle, e outros espaços, nos quais o ente mundial pretende tomar decisões que alienam as possibilidades de vida no campo, assinalou o líder hondurenho Rafael Alegria, ao mesmo tempo que circunscreveu que este movimento não cessará de lutar para que a agricultura fique fora da OMC.

De forma alternativa à Reunião Ministerial diferentes movimentos sociais do mundo organizaram uma significativa agenda de resistência, que compreendeu atividades de reflexão, cultura e mobilizações. Estas últimas, além de pôr em xeque a reunião ministerial, pois membros desta se sentiram ameaçados pela masividad do protesto, conseguiram dar a conhecer de maneira ampla suas propostas alternativas e os motivos da resistência.

Uma ampla gama de mobilizações pacíficas tais como ações de sensibilização nos lugares de grande contingência pública, marchas temáticas, e expressões culturais, despregadas principalmente pelo movimento camponês, ganharam a opinião favorável da população local, inicialmente reticente a isto e orgulhosa de ser parte do telefonema “capital do livre comércio”.

Não obstante como a liberdade que se defende para o comércio não é aplicável para as pessoas, não demorou em expressar-se a repressão contra as mobilizações pacíficas, se militarizó a cidade e impôs a censura contra a expressão divergente. Nos dois últimos dias da Reunião Ministerial, cerca de mil duzentas pessoas foram cercadas, presas, encarceradas e incomunicadas, a maioria membros da Via Camponesa.

Mesmo assim, até o último momento as mobilizações continuaram. Mais ainda, ao interior do cerco policial, no cárcere e em todos lados se escutava o grito “Fora, fora a OMC” ou “A OMC mata camponeses”, dito em dezenas de idiomas diferentes.