Hong Kong: Livre-comércio X Desenvolvimento

2005-12-19 00:00:00

O segundo dia da VIa. Conferência Ministerial da OMC em Hong Kong foi marcado na reunião oficial pela cristalização de posições diferenciadas sobre cada tema em discussão. Do lado de fora da reunião oficial, a agenda dos movimentos e organizações sociais foi marcada pela intensificação das críticas ao GATS (acordo sobre comércio de serviços), que culminará amanhã com intensos debates sobre o tema da água, setor em que vários países do mundo apresentam experiências trágicas com o processo de liberalização, como nosso vizinho Bolívia.

Entre os governos, destacaram-se em cada eixo temático a discussão dos seguintes pontos:

Agricultura: O G-20, o G-33 e o G-90 continuam conversações para uma proposta única sobre produtos especiais (SP) e salvaguardas (SSM), tendo como base 20% das linhas tarifárias. Sobre algodão, alguns países produtores estão irritados por não perceberem movimento efetivo para resolver o problema do algodão, assim como outras commodities como banana e açúcar. A União Européia segue sem oferecer ampliação de mercados, e os EUA seguem tentando jogar toda a culpa na EU: embora não alterem substancialmente sua política, seguem jogando para a mídia e tentando colocar todo o ônus do insucesso da negociação nas mãos da UE.

Serviços: Os países da África, Caribe e Pacífico (ACP), com apoio da União Africana e Caricom (Comunidade do Caribe) estão considerando a apresentação de um texto alternativo em Serviços, o que mostra a resistência ao rascunho apresentado pela direção da OMC.

Bens Industriais (NAMA): A novidade é a carta conjunta de onze países, aí incluídos Brasil, Índia, Argentina, África do Sul, Venezuela e Filipinas, entre outros, alinhada com a proposta inicial do BIA (Brasil, Argentina e Índia) sobre tarifas industriais, bastante diferente das discussões sobre fórmula suíça proposta por EUA e UE, o que aponta que o Brasil mudou sua posição em relação aos acenos que chegou a fazer antes do começo da reunião de uma redução tarifária alinhada com as expectativas dos países mais ricos.

O chamado “Pacote de Desenvolvimento”: Brasil e Índia estão dispostos a conceder “duty free/ quota free” (zeramento de tarifas e liberalização dos volumes comercializados) para os países menos desenvolvidos. Os EUA anunciaram ampliação da ajuda para US$ 2.7 bilhões, ainda dependente da existência de recursos orçamentários nos EUA e com a condição de que esses países priorizem o comércio, mas seus negociadores não têm como oferecer a vantagem que Brasil e Índia estão oferecendo aos países menores sem autorização do Congresso norte-americano. O Brasil se posicionou ainda contra a proposta “Aid for Trade” (“Ajuda por Comércio”) incluída no chamado “Pacote de Desenvolvimento”.

O fato mais importante até o presente momento ocorreu com a reunião do G-20, mais G-33, G-90, ACP e países menos desenvolvidos (LDCs), que resolveram juntar forças para apresentarem posições unificadas em torno do “Pacote de Desenvolvimento”, entre os outros temas priorizados nesta ministerial. Existem análises que estão comparando este processo que pode estar em curso com o que foi a criação do G-20 em Cancun. Hoje, aconteceu uma reunião com os Embaixadores e coordenadores de grupos negociadores desses países para definirem pontos comuns que os possam unificar. Esse movimento pode ter repercussões imprevisíveis neste momento das negociações e redesenhar mais uma vez o jogo de forças dentro da OMC, caso levado adiante.

Os impasses em Hong Kong estão deixando mais claro que o mundo idílico dos liberais, que hegemonizaram o debate ao longo dos anos 90 e definiram a agenda de negociações da OMC, onde o caminhar inexorável para o livre-comércio seria uma rota virtuosa com ganho para todos, não resistiu a um maior pragmatismo nas negociações que veio a tona com a virada do século, e a percepção de que os anos de liberalização comercial e os mecanismos e agendas criadas nesse período ampliaram ainda mais as diferenças entre países ricos e países pobres, a favor dos primeiros, e concentrou ainda mais a renda e a riqueza em favor dos mais ricos dentro de cada país, rico ou pobre - daí a reaproximação do grupo de países mais pobres com os médios.

Por isso, os impasses atuais e a falta de um acordo, mostram-se por si só insuficientes. É preciso ter a capacidade de rever a visão de que a liberalização comercial e os eventuais ganhos no comércio internacional possam reverter as desigualdades no mundo, e trabalhar para a geração de uma estratégia nova de desenvolvimento, que possa servir efetivamente à maioria dos povos, para a qual o comércio internacional pode até ser uma ferramenta, mas estará sempre longe de ser o principal caminho para um novo desenvolvimento em um país continental como o Brasil.

Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 2005

Rede Brasileira pela Integração dos Povos – REBRIP