Um mundo mais feminino é possível?
Isto não é bem uma análise, é mais um desabafo na forma de testemunho. Certo, não consigo me desvencilhar de um jargão “sociológico”, forjado ao longo dos 56 anos bem feitos. Mas tento. Talvez pior do que o olhar emprestado a certa ciência social seja a viseira machista em que fui treinado, ou melhor, domesticado e formado. Aí começa o meu testemunho: somos poucos, muito poucos, a reconhecer a verdadeira estrutura mental, de formas de pensar a realidade, que as desiguais relações de gênero criam na nossa cultura e que são nosso modo de ser.
Tomo o Fórum Social Mundial como exemplo de meu testemunho, pois coincide com a minha fase mais consciente e militante de homem que começa a ver a complexidade das relações de gênero a moldar as desiguais estruturas sociais. Dado o meu papel na frente do Ibase e como membro do Comitê de Organização do Fórum Social Mundial, sinto que vivo internamente um enorme desafio - as outras e os outros não sabem - de ordem intelectual, política e ética: usar a minha posição para fazer avançar a presença e a perspectiva das mulheres nestes espaços em que tenho influência. Olhem, não é fácil! As artimanhas que a cultura machista - o pão nosso de cada dia - nos prega são maiores do que a gente pensa.
Vou começar pelo mais simples: as mulheres no encerramento do Fórum Social Mundial. Coube a mim preparar o ato. Não falo do estilo, uma opção pela celebração da solidariedade na diversidade com mais emoção do que discurso, que foi um sucesso pelo que ouço de todas e todos. Destaco aquilo que talvez muitos não perceberam: o esforço em por mulheres em tudo. As trapalhadas de um quase feminista foram evidentes. Havia muitas mulheres nos diferentes papéis do ato. Uma mulher animou toda a cerimônia. Muitas mulheres falaram em nome dos diferentes grupos sociais constitutivos do Fórum, até mais do que delegadas. Afinal, elas foram apenas 43% das delegadas, mesmo sendo mais de 50% da população mundial! É triste reconhecer, mas o Fórum Social Mundial ainda foi pequeno em termos socais, em sua face feminina. Não é uma cerimônia, brilhantemente fechada por uma mulher, a Lia de Itamaracá, que pode esconder tal realidade.
Mulheres havia muitas, provavelmente a maioria. Fizeram muito barulho, especialmente com a Campanha Contra os Fundamentalismos. E sua presença com o Planeta Fêmea tinha que ser notada. Um progresso indiscutível em relação ao Fórum Social Mundial de 2001. Mas quanto temos ainda a fazer! Existe um viés estrutural que não dá protagonismo para as mulheres. A começar por nós no Comitê Organizador. Até achamos que estávamos sendo corretos pondo uma mulher para liderar a coletiva de imprensa, no dia 30.01.02, antes da abertura oficial do Fórum. A cena foi patética: uma única mulher no meio de outros sete homens representantes das entidades e movimentos do Comitê Organizador e ainda mais dois outros homens, o governador e o prefeito. O pior foi a solução encontrada. Como constatou uma jornalista presente: “Que coisa mais aborrecida! É assim em todo lugar. Ela é a única mulher e a única que está trabalhando!”
Através do Fórum Social Mundial estou aprendendo algo fundamental, que certamente vai mudar o desempenho do papel que acabo tendo nele e no Ibase. As mulheres são “minoria” criada por nós mesmos, no seio da sociedade civil. Não adianta culpar o capitalismo, o neoliberalismo, a globalização, os Estados excludentes, etc., etc. Este é um dos grandes problemas que se gestam, desenvolvem e mantêm na cultura civil. Na verdade, a jurássica cultura machista ainda tem terreno fértil e, como vírus, penetra em todo tecido social, nos fazendo seus reféns. Temos que mudar a cultura, tornar os direitos princípios éticos constitutivos de todas as relações sociais, de homem e mulher, de marido e esposa, de pai e filha, de patrão e empregada. Enfim, trata-se de reconhecer que as estruturas sociais são fruto de múltiplas determinações, onde relações de gênero, sem dúvida, têm um papel constitutivo até aqui pouco admitido.
“Um outro mundo é possível”, é o lema do Fórum Social Mundial. Olhando de uma perspectiva feminina a tarefa é bem mais gigantesca do que parece. Estamos incomodando o pensamento único dominante, sem dúvida. Mas estamos nos incomodando, nós mesmos, como nossos machismos, racismos e intolerâncias? A especificidade do Fórum Social Mundial é estabelecer o diálogo entre os diversos. Isto dá originalidade e força ao Fórum na construção de uma globalização das cidadanias no Planeta Terra. Mas o caminho é longo e cheio de percalço. Espero que as mulheres nos façam ser radicais, fazendo como até aqui vem fazendo: cobrando e nos incomodando.
Rio, 23.02.02
* Sociólogo, Diretor do Ibase