Uma outra América é possível
Olho – A implantação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) representa um ataque ao nosso sistema produtivo e redução da soberania nacional. Uma área de livre comércio prejudica o desenvolvimento brasileiro, gera mais riqueza aos mais poderosos e levará as mulheres a uma situação ainda mais difícil do que a atual.
A Área de Livre Comércio das Américas (Alca) foi lançada por líderes de países das Américas do Norte, Central e do Sul e do Caribe, em 1994. Os governantes dos Estados Unidos querem criar um acordo de livre comércio que se estenda do norte do Canadá até o sul da Argentina. Um acordo de integração econômica do Hemisfério é uma extensão do Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte), que gerou graves conseqüências para os países membro – sempre os maiores prejuízos sobrando para os mais fracos.
O ‘livre comércio’ defendido pelo governo norte-americano, suas indústrias e corporações é apresentado para “facilitar e estimular as trocas comerciais” entre os países das três Américas, exceto Cuba. Propõe a liberalização das compras, inclusive governamentais, dos investimentos e mercado financeiro, do setor de serviços e do regime de propriedade intelectual. Seriam também prejudicados o controle de patentes e royalties, o mercado de trabalho passa a ser flexível e precarizado (serão simples coincidências as alterações na CLT brasileira?).
As questões elencadas pelo movimento de entidades que dizem não à Alca são várias: risco de desindustrialização nacional; marginalização da agricultura familiar; eliminação da soberania nacional e maior limitação dos direitos democráticos; dissolução da identidade cultural; aprofundamento das privatizações dos serviços sociais e da medicina, entre outros ataques.
Na verdade, o acordo representa muito mais do que a liberalização das trocas. É uma necessidade da economia norte-americana e do capitalismo internacional, com o pretexto da integração e das trocas econômicas. A Alca representa, concretamente, uma estratégia dos Estados Unidos para alcançar a hegemonia em toda a região e aprofundará a fome e a miséria da população, passando o mercado a ser prioridade, em detrimento das necessidades dos seres humanos.
As negociações sigilosas para criação e implantação da Alca são acompanhadas de perto pelas grandes empresas e suas associações. Nos Estados Unidos, diversos comitês empresariais orientam os negociadores americanos e mais de 500 representantes empresariais têm acesso a documentos de negociação.
Com uma população de 800 milhões de pessoas e um Produto Interno Bruto (PIB) de 11 trilhões de dólares, a Alca seria a maior zona de livre comércio do mundo, com acordos comerciais que atingiriam todos os aspectos da vida das cidadãs e cidadãos das Américas. Esse tipo de acordo criará vantagens para o país que detém a hegemonia tecnológica e econômica.
É possível saber com razoável precisão como será a Alca: será como é o Nafta. E naquilo que for diferente assim o será para ser mais favorável aos Estados Unidos. O texto do eventual acordo vem tomando forma nas negociações que se realizam em nove grupos negociadores e, onde devido à fragilidade e dependência dos países do Caribe e da América Central e à desarticulação e fraqueza econômica de muitos Estados da América do Sul, pode-se imaginar que as propostas norte-americanas apresentadas nestes grupos terão grande possibilidade de êxito.
Mas as estratégias dos movimentos sociais que estão contra a Alca não são, no entanto, as únicas presentes na esquerda brasileira. Alguns setores, movendo-se por um suposto pragmatismo, consideram que a Área de Livre Comércio é um fato e que nos caberia pressionar o governo brasileiro para que este negocie melhores condições, inclusive partindo de uma posição de liderança na América Latina e no Mercosul.
Reeditam a posição de uma Alca social ou com direitos humanos que inclua capítulos sobre alívio à pobreza, respeito a acordos da OIT ou a participação da sociedade civil. Esta posição foi derrotada na Assembléia dos Povos, organizada pela Aliança Social Continental (ASC) em abril de 2001, em Québec. As mulheres da Marcha Mundial contribuíram muito para esta decisão, intervindo de forma organizada em todos os fóruns temáticos para defender a posição de não à Alca.
O debate entre as posições que se resumem nas expressões “Alca social” e “Não à Alca” aconteceu em um cenário onde havia milhares de ativistas anti-globalização nas ruas e o exército cercava a reunião de presidentes dos países das Américas. Estas diferentes posições se refletem em diferentes visões sobre o sentido fundamental da mobilização e da luta política: criar melhores condições de negociação ou ser o motor de transformação.
A sociedade brasileira deve lutar desde já em defesa de preservar o direito soberano de ter o Brasil uma política de desenvolvimento, que deve ser constituída por instrumentos de política comercial, industrial e tecnológica que uma futura Alca viria a impedir definitiva e legalmente.
A campanha contra a Alca
Várias organizações que trabalharam juntas no Plebiscito da Dívida Externa em 2000 decidiram realizar uma campanha contra a Alca no Brasil. A campanha prevê atividades de formação, propaganda, mobilização, com eventos simultâneos por todo o país. No início de abril se iniciam nos Estados cursos sobre a Alca e suas conseqüências para a América Latina com pelo menos mil pessoas em cada atividade. Seu ponto alto será o plebiscito que acontece de 1º a 7 de setembro de 2002.
A campanha brasileira propôs, na assembléia da ASC, a realização de um plebiscito continental, com consultas nos países no período entre setembro de 2002 e abril de 2003. As redes continentais envolvidas na organização do plebiscito se reuniram antes do Fórum Social Mundial e se reencontrarão novamente no final de maio em Quito, Equador, para planejar suas atividades e realizar ações públicas. A reunião ministerial sobre a Alca acontece também em Quito no final de outubro e, possivelmente, neste mesmo momento acontecerá o Fórum Social Mundial do continente americano.
A Marcha Mundial das Mulheres integra a coordenação da campanha brasileira e participa da articulação de redes continentais. Além do envolvimento nos comitês estaduais e a participação nas atividades gerais, a Marcha está trabalhando o tema com as mulheres. Durante o Fórum Social Mundial, na passeata contra a Alca, foi organizado um bloco feminista com mulheres de vários países e muita animação. Com músicas e palavras de ordem, a Alca foi condenada e a América que queremos afirmada, sem machismo, sem desigualdade e opressão.
Em 2000, a participação na Campanha da Dívida Externa - combinada às ações na defesa das plataformas presentes na “Carta das Mulheres Brasileiras” - fortaleceu muitas mulheres para incidir no debate econômico no interior dos movimentos que já participavam ou interpelando autoridades. Foram organizadas oficinas e cursos onde eram desvendados os “mistérios” dos cadernos de economia dos jornais.
As mulheres da Marcha Mundial querem reeditar e ampliar esta experiência realizando oficinas sobre a Alca a partir de uma posição firme contra a chamada Área de Livre Comércio. Estas oficinas acontecerão em grupos de trabalhadoras urbanas e rurais, jovens e ativistas de movimentos populares e vão se juntar a outras iniciativas como visitas de casa em casa, debates em feiras e praças públicas para mobilizar a participação das mulheres no plebiscito e no conjunto da campanha.
As mulheres estarão presentes na campanha contra a Alca porque acreditam que a soberania nacional é condição básica na conquista de direitos que pleiteiam na Carta das Mulheres Brasileiras, como emprego e salário justo, o fim da apropriação privada da biodiversidade e da privatização de bens públicos e recursos naturais como a água.
Mulheres na mira da Alca
A Alca seria mais um daqueles acordos onde só os pobres perdem e os ricos continuam ganhando muito. Para as mulheres latino-americanas, a Alca significa mais discriminação, maior exploração no trabalho e redução do seu valor social ao simples valor de mercado.
As zonas francas de exportação pelo mundo afora se caracterizam por ter um alto número de mulheres jovens (90% de toda a mão-de-obra), salários muito baixos e jornadas demasiadas longas (entre 12 e 14 horas), uma total ausência de serviços sociais e um tipo de trabalho árduo e perigoso, com total descumprimento de normas trabalhistas mínimas e a ausência de direitos sindicais. Este é o exemplo mais concreto da implantação do Nafta, o surgimento das “maquiladoras” (expressão originada nas zonas de comércio livre de Maquila, norte do México).
Se as incursões neoliberais dos últimos anos empurraram o contingente feminino empobrecido ainda mais abaixo da linha da pobreza, a implantação da Alca aprofundará ainda mais essa situação. As mulheres representam 70% das pessoas mais carentes e as políticas macroeconômicas em curso no mundo afetam de forma diferente os homens e as mulheres: 75% dos 4,5 milhões de pessoas que vivem com menos de dois dólares por dia são mulheres e crianças. As pequenas produções agrícolas, onde está grande parte da mão-de-obra feminina, serão as primeiras vítimas com a implantação de uma área de livre comércio. Questões relativas à saúde e educação, que também sofrerão com a Alca, são também exemplos das conseqüências da Alca na vida das mulheres. As micro e pequenas empresas, que têm grande número de mulheres em seus comandos, serão atacadas fortemente, pois a “livre concorrência” nos moldes neoliberalizantes, não dá chance alguma aos mais fracos.
O fato é que a Alca é prejudicial para mulheres, homens, crianças e meio-ambiente porque produz, na sua essência, mais desigualdade, mais pobreza e injustiça social.
Conseqüências nefastas do Nafta
A aplicação do conceito de Área de Livre Comércio no continente americano começou em janeiro de 1994, com o surgimento do Nafta (Área de Livre Comércio da América do Norte), abrangendo os Estados Unidos, o Canadá e o México. A experiência tem sido arrasadora para os povos daquela região:
- Perda de soberania para o Estado do México;
- Destruição da legislação ambiental e de áreas de proteção ambiental no território mexicano;
- Roubo do conhecimento tradicional, patenteamento de sementes dos povos indígenas mexicanos e criação de sementes transgênicas;
- Ampliação das desigualdades regionais e de renda no México;
- A economia mexicana passou a ser controlada pelas grandes empresas dos Estados Unidos;
- 200 mil postos de trabalho foram fechados no México, somente no setor privado, no ano 2000;
- Antes do Nafta, 49% dos mexicanos viviam na pobreza. Hoje, são 75%;
- Ampliação do desemprego em diversas regiões dos três países devido ao fechamento de empresas em busca de mão-de-obra mais barata;
- Redução do nível salarial dos trabalhadores nos três países;
- Precarização ainda maior das relações trabalhistas;
- Aumento da exclusão social em toda a região abrangida pelo Nafta;
- Submissão ainda maior dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário dos três países ao poder das grandes empresas norte-americanas.