Organismos multilaterais ameaçam direitos indígenas
Quito.- O debate sobre a relação dos povos indígenas com os
organismos multilaterais foi uma das mais polêmicas e
produtivas discussões da II Cúpula Continental dos Povos e
Nacionalidades Indígenas. O encontro está ocorrendo em
Quito, Equador, entre os dias 21 e 25, e reúne organizações
indígenas de 24 países americanos.
De um lado, estão entidades que acreditam que a única forma
de defender os direitos indígenas é assumindo uma posição
crítica e combativa frente a organismos como o Fundo
Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. De outro
lado, estão representantes de entidades favoráveis a um
diálogo com esses organismos, não excluindo a possibilidade
de serem contemplados em seus projetos. Todos, no entanto,
reconhecem que as organizações desrespeitam os compromissos
com os direitos indígenas.
A pertinência do debate é justificada pelo fato de que os
organismos internacionais estão assumindo um papel cada vez
mais estratégico no processo de globalização neoliberal. O
FMI e o Banco Mundial utilizam programas de financiamento
para pressionar e obrigar governos, sobretudo de países
pobres, a desenvolverem políticas que favorecem as
transnacionais européias e estadunidenses. Tais políticas
impedem os Estados de terem políticas autônomas e favorecerem
seus povos – o que impede os indígenas de conseguirem
assegurar seus direitos.
Presente de grego
"A política desses organismos para os indígenas é como a
parábola: querem matar a fome nos presenteando com um bolo
feito com milho contaminado, transgênico. Eles nos oferecem
migalhas para evitar aquilo que mais temem: que nos
mobilizemos e lutemos por nossos direitos", assinalou
Salvador Zuñiga, do Comitê de Organizações Populares e
Indígenas (Copin) de Honduras.
Já Antonio Jacanamijoy, indígena colombiano, ex–coordenador
do Fórum de Permanente para as Questões Indígenas, da ONU,
procurou contemporizar e disse que houve avanços nas
negociações com os organismos internacionais. "Não podemos
nos isolar do processo. Se o Banco Mundial e o FMI querem
conversar conosco, vamos até lá colocar nossas posições",
opinou. O equatoriano Ampan Caracras, da Coordenadota das
Organizações Indígenas de la Cuenca (Coica), também seguiu a
mesma linha e reclamou que os indígenas recebam apenas 40%
dos projetos do Banco Mundial em seu país, enquanto
representam a imensa maioria da população. Caracras, no
entanto, reconheceu que os organismos dizem que reconhecem os
direitos indígenas, mas não têm feito nada para implementá-
los.
Perversidade liberal
A venezuelana Nicia Maldonado, presidenta do Conselho Índio
da Venezuela (Conive) discordou que se deva fazer acordos com
as instituições internacionais. A indígena lembrou o papel
que tais organizações desempenham na sustentação das
desigualdades. "Não podemos legitimar suas políticas. De que
me serve uma escola se eu não posso definir qual o conteúdo
que vai se ensinar nela? Os organismos internacionais não
querem nos apoiar, mas sim definir o que vamos pensar. É uma
forma de dominação, de recolonização de nossos povos",
criticou Nicia, ressaltando a ameaça desses projetos ao
direito indígena de preservar sua cultura e suas tradições.
Salvador concorda. Segundo ele, as organizações
internacionais nunca dão algo de graça. "Essas instituições
exigem, em troca, nosso endividamento. Querem também ter
acesso às nossas florestas, aos nossos rios, a toda riqueza
dos indígenas. Não podemos ser ingênuos e acreditar que podem
nos ajudar", acrescentou.
O hondurenho contou que há muitos casos em que líderes de
comunidades indígenas são cooptados pelos organismos
internacionais, que lhe contratam para defender seus
interesses. "Como nós temos o costume de acreditar muito em
nossos irmãos, esses organismos se aproveitam de oportunistas
para implantar seus projetos", critica.
Salvador pontuou que o movimento indígena deve buscar
projetos alternativos de desenvolvimento: "temos de nos
organizar, desde a base, para exigir autonomia para fazermos
uso da nossa riqueza, nossos minérios, nossas florestas".
Plano Puebla Panamá
Um bom exemplo de como os organismos internacionais atuam
contra o interesse dos povos indígenas foi dado por Valentim
Torres, que vive em uma comunidade de Puebla no México. O
Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bird), com apoio do
Banco Mundial, está planejando construir uma ampla rede de
infra-estrutura ligando a América Central ao México, o Plano
Puebla Panamá (PPP). O projeto prevê a construção de
aeroportos, hidrelétricas, rodovias, ferrovias e portos.
Os técnicos do Bird pegaram o mapa da América Central,
desenharam o projeto do PPP e ignoraram a presença dos povos
milenares que estavam ali, no meio das rotas das rodovias,
ferrovias ou mesmo vivendo onde seriam construídos
aeroportos. Em nome do desenvolvimento ou da civilização, o
governo mexicano e o Bird ofereceram indenizações aos
indígenas. Quem não estivesse satisfeito seria retirado pelo
uso da força. "Não aceitamos essa imposição. Tomamos as ruas,
fechamos avenidas e impedimos que iniciassem as obras", conta
Torres.
Durante os prostestos, um líder comunitário foi preso e houve
fortes confrontos. Mas, até agora, a vitória é dos povos
indígenas. "Depois da resistência popular, o governo mexicano
suspendeu as PPPs. Mas isso pode ser temporário e, por isso,
temos de estar mobilizados para enfrentar essas instituições
multilaterais", contou Torres.
Para ele, tais organismos não iriam levar desenvolvimento,
energia elétrica e prosperidade aos povos, como se divulgava.
"Eles vão, na verdade, poluir nosso meio ambiente, aumentar
nossas dívidas e acabar com nossa autonomia. Temos outro
projeto para nosso desenvolvimento e queremos implementá-lo",
revelou Torres.
Declaração final
O mexicano explica que a troca de experiências como essa da
resistência ao PPP vai permitir aos indígenas que aprofundem
o conhecimento do papel dos organismos multilaterais e possam
chegar a uma declaração em consenso. Os indígenas vão, ainda,
discutir as propostas do texto em uma plenária geral, que
começa hoje. A previsão é que declaração final da Cúpula dos
Indígenas seja divulgada dia 25, quando termina o encontro e
se inicia o Fórum Social Américas.