Informe para a Relatora ONU sobre a situação do campo e os direitos humanos

2007-12-14 00:00:00

Informe do MST para a Relatora das Nações Unidas - ONU
sobre a situação do campo brasileiro e os direitos humanos

Brasília, 03 de dezembro de 2007

Apresentação

O modo de produção da agricultura brasileira está passando por mudanças de caráter profundo e estrutural.  Entre 1930 e 1990, a agricultura brasileira foi dominada pelos interesses da indústria, desenvolvendo um modelo agrícola que combinava a co-existência entre a grande propriedade exportadora e a agricultura familiar.

A grande propriedade produzia para exportar café, açúcar, cacau, carne bovina e, mais tarde, soja e laranja.  Os dólares e libras que entravam no país eram usados pela burguesia industrial para financiar a importação de máquinas para as fábricas. 

A agricultura familiar, por sua vez, liberava mão-de-obra para as fábricas e produzia alimentos baratos para abastecer os trabalhadores, que viviam na cidade, e garantir que sobrevivessem com salários baixos.

Nesse modelo, ainda havia espaço para uma Reforma Agrária, que chamamos de clássica, na qual a indústria poderia absorver e conviver com a multiplicação do campesinato, que deveria se integrar ao mercado interno.

Nos últimos anos, com a implementação do neoliberalismo, o setor dinâmico da economia, que dirige os demais ramos, tem raiz no casamento do capital financeiro com as grandes empresas transnacionais, que passaram a dominar também a agricultura.

A agricultura brasileira está sob domínio de 50 grandes conglomerados, dos quais alguns são brasileiros, porém associadas a transacionais, que fizeram uma parceria, apoiada pelo Estado e pelos meios de comunicação, com os fazendeiros capitalistas, dando a luz ao modelo do agronegócio.

As empresas do agronegócio controlam o mercado interno e externo, os preços e os insumos industriais.  Também produzem os agrotóxicos e máquinas e dominam as grandes redes de agroindústrias, cada vez mais concentradas e centralizadas.  Em cada cadeia produtiva, como leite, aves, carne de porco, apenas três ou quatro empresas controlam o mercado e os preços.

A onda dos agrocombustíveis criou uma nova ofensiva de investimentos de capital estrangeiro, sob controle das mesmas empresas.  O resultado será maior concentração da propriedade da terra, pois a produção de cana demanda terras férteis e bem localizadas.  Com isso, passamos por uma desnacionalização ainda maior de nossa agricultura.

A questão é que o modelo agrícola subordinado à indústria, que combinava a grande propriedade exportadora com agricultura familiar de mercado interno, passou por uma transformação de padrão de dominação, que está nas mãos de grandes empresas internacionais e do capital financeiro, que injeta dinheiro para controlar terras, produção, insumos e o mercado.  Atualmente, até a grande propriedade está subordinada a esse complexo, que inclusive reparte os seus lucros. 

No modelo conhecido como agronegócio, não há espaço para a agricultura familiar nem mesmo para o fortalecimento do mercado interno, sendo que a tendência é que ela seja empurrada para áreas marginais da economia ou para nichos com maior demanda de mão-de-obra.

Diante disso, não há espaço para a Reforma Agrária dentro de um modelo dominado por empresas transnacionais.  Ao contrário, os pobres do campo serão expulsos para as cidades ou terão assistência de medidas de compensação social, como Bolsa Família, Funrural, entre outros.

O impasse que a Reforma Agrária está vivendo agora é o seguinte: a viabilidade de um programa de democratização da terra, divisão das grandes propriedades, mesmo as improdutivas, e a distribuição para os sem terra depende da superação do modelo econômico neoliberal.  Portanto, será necessário derrotar os interesses das empresas transnacionais da agricultura e mudar o modelo do agronegócio.

Isso traz conseqüências imediatas para o nosso movimento.  Os inimigos da reforma agrária não são apenas os antigos latifundiários atrasados, mas as empresas transnacionais e seus aliados, os fazendeiros capitalistas ditos “modernos”. 

Temos que enfrentar uma série de instituições que dão sustentação jurídica ao modelo excludente, como o Estado e o Poder Judiciário; e os que dão sustentação ideológica, como as grandes redes dos meios de comunicação, que defendem o agronegócio como alternativa para o nosso desenvolvimento.

Assim a luta pela Reforma Agrária ficou mais difícil, mas também mais politizada, uma vez que o agronegócio evidencia todos os dias suas contradições.  As empresas usam técnicas agrícolas agressoras do meio ambiente, que causam poluição e alteram o clima até nas cidades, expulsam os pobres do campo, fomentando o êxodo rural e ampliando as favelas. 

Além disso, tem um alto consumo de agrotóxicos, que afetam a saúde dos consumidores de produtos agrícolas.  Ainda por cima, pressionam todos os anos pela liberação de recursos públicos para seus financiamentos e não pagam nunca as suas dívidas.

Queremos apresentar, a seguir, algumas questões que julgamos essenciais no combate às práticas que desrespeitam os Direitos Humanos e asseguram a impunidade aos crimes ambientais.  Sabemos da complexidade que envolve o combate às essas praticas, uma vez que envolve os interesses políticos e econômicos de grupos poderosos. 

No entanto, ao apresentarmos a situação de exploração a que está submetido o povo brasileiro e os saques das nossas riquezas naturais e ao cobramos providências às autoridades governamentais, esperamos contribuir para a transformação dessa realidade e proporcionar condições de construirmos um país socialmente justo, democrático e soberano.

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Brasília (DF), 03 de dezembro de 2007.

Modelo agro-exportador: riqueza e privilégios para uma minoria, à custa da exploração do povo brasileiro e da degradação ambiental.

I – Os monocultivos, a exploração e a modernidade na história do Brasil.

A produção agrícola através de monocultivos é uma das principais inovações do chamado mundo moderno.  Antes de ser um fenômeno técnico, que com certeza é, os monocultivos são um fenômeno político.  Até sua introdução, primeiro no arquipélago dos Açores, na África, e depois na América, não se conhecia em qualquer lugar do mundo um grupo social, uma comunidade ou um povo que se caracterizasse por tais práticas.  Desde o início, a prática dos monocultivos esteve associada a produzir não para si mesmo, mas sim para outrem, no caso para um mercado mundial que começa a se constituir por meio dessas práticas.  Até então, seja em comunidades camponesas, seja por outras formações sociais, como as indígenas, por exemplo, as práticas agrícolas sempre se caracterizaram pela diversidade de cultivos e pela associação da agricultura com a criação de animais e com o extrativismo.

A introdução dos monocultivos foi, assim, uma das principais heranças do colonialismo, haja vista que associado a essa prática veio à escravidão e o racismo, fenômenos que, juntos, vão conformar uma estrutura de poder marcada pela violência contra os povos e contra a natureza.  Entre nós, na América, a dominação da natureza e toda violência contra ela perpetrada foi, ao mesmo tempo, a violência contra os povos e os trabalhadores escravizados também vistos como desprovidos de cultura.  O conquistador/colonizador se arrogando superioridade cultural se dava o direito de dominar a natureza que, aqui, incluía os homens e mulheres que, segundo a sua leitura, não detinham cultura.  Violência simbólica e violência física não se dissociam.

Desde o início, a prática de monocultivos esteve associada às mais modernas técnicas de transformação de matérias primas.  Ao contrário do que dizem os livros do nível primário ao universitário, os países latino-americanos não eram exportadores de matérias primas, mas sim de açúcar, um produto manufaturado.  Portanto, as primeiras manufaturas modernas estavam no Brasil, em Cuba e no Haiti e não na Europa e transformavam a cana de açúcar produzida por meio de monocultivos com base em trabalho escravo.  Vê-se, assim, que aquilo que se chama modernidade é, para os nossos povos, marcado por profundo sofrimento, produzido pela violência da escravidão e dos monocultivos. 

Há uma linha de continuidade histórica que vem dos mais antigos engenhos, à sua época o que havia de mais moderno, aos atuais latifúndios monocultores dos agronegociantes que, hoje, concentram terras e capital com seus monocultivos de soja, cana de açúcar, eucalipto, algodão, laranja, milho, girassol e outros.  Há 500 anos somos modernos! Há 500 anos produzimos com as tecnologias de ponta para o mercado mundial! Há 500 anos experimentamos o lado amargo da modernidade: a colonialidade! O sistema mundo que começa a se constituir a partir de 1492 é um sistema mundo moderno-colonial, e não simplesmente moderno.  É somente a partir daí que a Europa passou a ter a centralidade geopolítica e cultural que até hoje mantém e cuja matriz imperial viria partilhar com os Estados Unidos. 

A centralidade que a Europa passa a ter com o advento do sistema mundo a partir de 1492 é inseparável da América, da exploração dos seus recursos e das suas gentes originárias e daquele/as que para cá foram trazido/as especificamente para fazerem monocultivos para exportação para saciar a sede de acumulação de uma burguesia branca que, ainda, se revestia de uma missão civilizatória marcada por um componente religioso que legitimava com deus a conquista.  Essa dimensão mítico-religiosa está por trás desses monocultivos técnico-científicos que matam e desmatam há 500 anos em “Nuestra América” (José Martí).

II - As Conseqüências Sociais e Ambientais da Prioridade ao Monocultivo

O Brasil é o único dos cinco maiores países em extensão territorial do mundo que não passou por uma reforma agrária ou por uma política sistemática de democratização do acesso à terra, o que por si só indica o papel político central que, em nossa sociedade, cumpre o grande proprietário de terras.  Esse fato tem enormes implicações sociais e ambientais haja visto que a conquista de terras nas chamadas áreas de fronteiras continua marcada pela mesma colonialidade que nos caracteriza desde os primórdios da colonização européia.  Há um Complexo de Violência e Devastação que se reproduz há 500 anos e que, hoje, tem sua face mais dramática nas áreas de expansão moderno-colonial comandada pelos agronegociantes nos Cerrados do centro-oeste, do oeste baiano, do sul do Maranhão e do Piauí e na Amazônia meridional desde o Acre até o Pará. 

As oligarquias brasileiras do agro-negócio – os grandes proprietários rurais, as transnacionais e o capital financeiro - têm sempre pronto o discurso da modernidade tecnológica que praticam há 500 anos.  Na voz dessas oligarquias, não há nada mais tradicional do que o discurso invocando o moderno! Suas monoculturas quincentenárias continuam se confrontando com territórios que, longe de serem vazios demográficos, são ocupados por povos indígenas, camponeses, seringueiros, quilombolas, etc.  São territórios ocupados exatamente por aqueles que, dado o caráter patrimonialista do Estado brasileiro, são tidos como os sem-direitos, pois mesmo tendo a posse da terra não a têm enquanto direito.

Essas populações camponesas, ao contrário dos monocultivos, vivem da sua criatividade cultural e da produtividade biológica primária que a natureza oferece – biomassa – fazendo uma agricultura diversificada, ainda que, muitas vezes, sobrevivendo em condições piores do que poderiam caso houvesse um conjunto de políticas que pusesse em diálogo a ciência convencional com essa ciência da tradição, como chamam alguns pesquisadores.

Como acontece em toda relação marcada pela dominação/subjugação, ao dominado lhe é negada toda sua potencialidade, para que dele seja extraído o que o dominador impõe.  Assim, uma natureza tropical como a nossa, que tem a propriedade de nos oferecer mais de 500 toneladas de biomassa por hectare, como é o caso da floresta Amazônica, teve todo esse potencial produtivo natural ignorado em nome de uma agricultura monocultora que, simplesmente, desperdiça todo esse potencial.  E expõe, assim, os solos à erosão, sobretudo em função de não se considerar devidamente o regime de chuvas tropicais que, por aqui, é torrencial.  A paisagem, sobretudo em áreas da quase extinta Mata Atlântica, está marcada pela degradação ambiental, que é o efeito ecológico mais deletério dessa agricultura de monocultivos, além da perda da diversidade biológica junto com o extermínio de povos e de suas culturas.

Alertamos a comunidade internacional que as áreas onde hoje estão as maiores disponibilidade de bens genéticos (germoplasma), ou seja, as áreas de maior diversidade biológica são áreas ocupadas por populações camponesas e/ou por populações cultural e etnicamente diferenciadas, como os quilombolas e povos originários.  Insistimos que a ideologia e o imaginário conformados em torno de uma presumida superioridade epistêmica, cultural e religiosa européia tende a deslegitimar essas populações tratando-as como inferiores e como estorvo ao seu progresso e ao seu desenvolvimento, assim como tratam a natureza como algo a ser dominado.  Como há uma enorme riqueza em diversidade biológica nessas áreas há também um enorme acervo de conhecimentos elaborado por essas populações que não pode e não deve ser desperdiçado.  Essas populações e as áreas que ocupam tornam-se estratégicas para conter o Complexo de Violência e Devastação com seus monocultivos moderno-coloniais.

 Alertamos para as graves conseqüências, não só para a sociedade brasileira, como mundial, que derivam do modo como esse moderno agronegócio vem alardeando a enorme disponibilidade de terras que o Brasil possui como vantagem comparativa para a produção de agrocombustíveis e de outras e de outras commoditties.