Tratado de livre comércio: direcionado a uma integração justa e para todos

2004-10-01 00:00:00

1. De 10 a 13 de agosto de 2004, reunimo-nos na cidade de São
Paulo, Brasil, bispos, sacerdotes, religiosos, religiosas,
leigos e leigas, comprometidos com a Pastoral Social e
Cáritas, de quase todos os países da América Latina e Caribe.

Num clima de comunhão e solidariedade, dialogamos amplamente
sobre os Tratados de Livre Comércio (TLC) e seus efeitos na
maioria empobrecida do nosso Continente, dentro do sistema
global de comércio, que promove em toda parte esses tratados.
Desta forma, fazemos nossas as preocupações dos pobres,
porque: "as alegrias e as esperanças, as tristezas e as
angústias dos homens de nossos tempos, são à sua vez, alegrias
e esperanças, tristezas e angústias dos discípulos de Cristo."
( GS, 1)

2. Primeiro, escutamos atenciosamente tanto os representantes de
vários governos do Continente, como os representantes da
sociedade civil. Em seguida, havendo compartilhado, também,
as preocupações e pontos de vista de diversos setores da
população, realizamos à luz da Palavra de Deus e do
Magistério Social da Igreja, uma análise comunitária, desse
tão complexo processo e de seus efeitos, principalmente, para
os setores mais vulneráveis de nossa América Latina.

3. Ao concluir esse encontro, desejamos expressar publicamente
nosso compromisso como Igreja. Ao mesmo tempo, queremos
compartilhar com nossos irmãos e irmãs na fé, assim como com
todas as pessoas de boa vontade, algumas reflexões e
sugestões.

Move-nos a convicção de que "nada há de verdadeiramente humano
que não encontre eco no coração da Igreja.", (GS, 1), posto
que "o homem é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer
no cumprimento de sua missão." (RH, 14). No fundo da nossa
preocupação pastoral está a palavra de Jesus: "Tenho compaixão
das pessoas" (Mc. 8, 2). Buscamos o bem integral dos homens e
mulheres da América Latina e Caribe, particularmente dos
pobres, dos marginalizados e dos excluídos.

4. Nossa palavra se une à de numerosos bispos e conferencistas
episcopais. Dentre estas, assinalamos a recente declaração
conjunta dos Bispos dos Estados Unidos e da América Central,
que afirma: "O desafio fundamental é pôr em andamento um
modelo de desenvolvimento humano sustentável"(1) . Parece-nos
que outro desafio inadiável, é avançar com decisão no
processo de integração entre nossos países, a fim de
construir o quanto antes, a Comunidade Latino-Americana e
Caribenha de Nações.

A) INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA E DESENVOLVIMENTO HUMANO

5. No centro do Processo de Integração que defendemos, está o
ser humano. Ocupa também um lugar importante, o comércio
entre os povos, entendido como uma expressão de relação
humana e da necessidade que todos e cada um de nós temos uns
dos outros. Nesse sentido, a integração dos ovos seria uma
expressão de fraternidade e de solidariedade.

De acordo com os ensinamentos da Igreja, a justiça deve estar
presente nas relações comerciais: o comércio justo favorece a
relação pacífica entre os povos.

6. O processo de integração no qual estão empenhados nossos
países, deve ser estimulado por um conjunto de princípios
éticos. O princípio fundamental é o reconhecimento da
dignidade do ser humano como valor central. Para que exista
um verdadeiro desenvolvimento humano é necessário articular
os valores da eficiência e da competitividade - tão exaltados
na cultura atual com os métodos de justiça social, eqüidade,
solidariedade e subsídios. Esse conceito de desenvolvimento,
inter-relaciona o conceito econômico com o político, o
cultural com o social e o meio-ambiental, particularmente na
hora de definir os fins e os meios para alcançá-lo.
Reconhece, também, a centralização do trabalho humano, não
apenas como criador de riquezas, mas acima de tudo como fator
essencial de relações humanas: o ser humano realiza-se por
meio do trabalho. (CF. Laborem Exercens, 6).

7. É evidente que para o seu desenvolvimento adequado e
harmonioso, os indivíduos e os povos necessitam de bens
materiais. No entanto, de acordo com a sabedoria do
Evangelho, não podemos reduzir o homem ao estreito horizonte
da posse e do gozo das coisas materiais: a vida humana não se
esgota no afã obsessivo de possuir, comprar e consumir. As
coisas deste mundo nunca poderão saciar a sede de verdade,
bondade e felicidade que o coração humano experimenta. Assim
está inscrito na alma de nossos povos. É fácil perceber a
cultura dos povos latino-americanos e caribenhos como um
conjunto vivo de referências, valores e símbolos através dos
quais as pessoas se relacionam entre si, com a natureza
através do trabalho e com Deus.

8. Uma autêntica integração baseia-se em valores como os que
mencionamos e numa clara opção pela vida das pessoas e das
comunidades mais vulneráveis, respeitando a sua identidade
cultural, tão fortemente marcada pelos valores espirituais.
Por conseguinte, vai mais além dos aspectos puramente
comerciais. Necessitamos de uma integração que incorpore as
dimensões culturais, sociais e políticas, nas relações entre
os povos, e, que tenha sempre consciência de suas vinculações
históricas profundas.

9. Na elaboração das propostas de integração, esses princípios
traduzem-se na estimativa prévia dos impactos que as mesmas
possam ter sobre a qualidade de vida das pessoas, sobre sua
posição na estrutura das relações sociais e sobre a
integridade do meio ambiente, em suma, da "casa comum". Isso
é o que se deve salvar a qualquer custo, superando-se a
perspectiva habitualmente utilizada em economia que visa o
desenvolvimento com eficiência e competitividade, como meta
das políticas econômicas. Estas, são eticamente aceitáveis na
medida em que possam contribuir para melhorar a qualidade de
vida das pessoas.

B) O TRATADO DE LIVRE COMÉRCIO NO PROCESSO DE INTEGRAÇÃO

10. Os povos da América Latina e Caribe têm subscritado
múltiplos acordos, na busca de integração entre si e entre
outras nações. Dentre esses acordo proliferam, hoje, os
Tratados de Livre Comércio (TLC), que regulam a abertura dos
mercados a produtos dos países que comercializam entre si. À
primeira vista, poder-se-ia pensar que os Tratados de Livre
Comércio limitam-se à esfera econômica. Entretanto, nos
parece que como se negociam ou estão negociando, os TLC não
são apenas instrumentos de política comercial, mas sim, algo
que afeta também, em maior ou menor grau, aspectos tão
importantes como a identidade cultural, o futuro da
agricultura, da propriedade intelectual, da biodiversidade e
de outras áreas da vida, especialmente nas comunidades
pobres. Por outro lado, quando tais acordos convertem-se em
Leis da República, comprometem para bem ou para mal, o futuro
das nações que os subscrevem.

11. O Modelo econômico vigente em nosso Continente, que tende
a concentrar os poderes econômico, político e social em mãos
de poucos, tem freado sensivelmente a consolidação do
desenvolvimento humano integral e sustentável que a Igreja
propõe. Isso manifesta-se nas situações de pobreza e
exclusão, na fenda profunda e crescente entre pobres e ricos,
na desigualdade da distribuição de rendas, de riquezas e de
oportunidades, nos sistemas inadequados de educação e saúde
pública, de segurança, gerando violência e migração forçada.

12. Nesta realidade dramática tão contrária à dignidade
humana, existem "ganhadores" e "perdedores". Dentre os
ganhadores estão geralmente as corporações multinacionais e
setores privilegiados de nossos países. Os perdedores os
encontramos nas populações mais vulneráveis: camponeses,
micro e pequenos empresários, mulheres, jovens, pessoas da
terceira idade, incapacitados etc. Para superar-se esta
situação inaceitável, faz-se urgente uma revisão profunda no
tipo de cooperação que se requer e designar os recursos
necessários a fim de que se consiga um autêntico
desenvolvimento humano.

13. Afirma-se, com razão, que em comum os Tratados de Livre
Comércio negociam-se sem oferecer aos povos a informação à
qual eles têm direito. Por essa razão, não se propicia por
parte dos governos, uma participação responsável dos
cidadãos. Segundo a afirmação acertada, de nossos irmãos no
Episcopado do Norte e do Centro da América Latina, "negociar
de costas para o povo, seria contrário aos mais elementares
princípios de democracia participativa". Numa palavra, as
pessoas têm o direito de saber o quê se está negociando e em
quê isso vai favorecer, principalmente, a maioria
empobrecida"(2) .

14. Ao anteriormente citado, acrescente-se a debilidade das
democracias, o derrotismo político e as crises dos partidos.
Com freqüência os votos não significam uma autêntica
representatividade nos parlamentos. Os cidadãos nada ou muito
pouco podem fazer ante a corrupção pública ou privada. E
cresce a indiferença perante os problemas que afetam a todos.

15. Quando falta uma real participação dos cidadãos e
cidadãs, nos processos econômicos – e isso se aplica aos TLC
– debilita-se ainda mais o tecido social. Cria-se
inevitavelmente, um ambiente de confronto, agravado pelas
relações assimétricas que existem a nível nacional e
principalmente a nível internacional.

16. Graças a Deus, não faltam atos positivos que vemos como
signos de esperança. Distinguimos, dentre estes, a sociedade
civil emergente e a dinâmica dos movimentos sociais, os
processos de democracia participativa e o controle-cidadão,
os esforços notáveis de trabalhadores e trabalhadoras do
campo e da cidade, para por em andamento experiências de
comércio justo e economia solidária.

C) NOSSA PALAVRA AOS GOVERNANTES E NOSSO COMPROMISSO COM A
IGREJA

17. No final de nossa mensagem e tendo em conta
principalmente as imensas maiorias que estão sumidas na
pobreza e na marginalização, na América Latina e Caribe,
formulamos as seguintes propostas aos governantes de nossos
países e ao mesmo tempo, fazemos público o nosso compromisso
como Igreja, para realizar aquilo que nos corresponde.

18. Que os governos dos países onde ainda não se haja
ratificado os Tratados de Livre Comércio, difundam e
propiciem o debate público entre todos os setores
interessados. Os conteúdos dos TLC bilaterais e multilaterais
como a ALCA, antes de serem submetidos aos respectivos
Congressos, para a sua possível ratificação, devem ser
suficientemente discutidos.

19. Que nesse processo examinem-se com particular atenção no
seio da sociedade civil, temas tão sensíveis como os
seguintes: subsídios para a agricultura por parte dos países
industrializados; o direito de propriedade intelectual e seu
impacto em áreas como: saúde e soberania alimentar; o impacto
dos TLC no meio-ambiente e nos direito dos trabalhadores;
sues efeitos em grupos vulneráveis: mulheres, jovens,
terceira idade e incapacitados.

20. Que se dê maior relevância à Organização Mundial do
Comércio, (OMC), como foro adequado para dirimir questões
como subsídios agrícolas por parte dos países
industrializados e outros assuntos que permitam ir superando
as assimetrias.

21. Que os TLC tenham como referência uma Agenda mais ampla
para o desenvolvimento humano integral, principalmente nos
setores mais pobres e vulneráveis. Esta agenda deveria
incluir recursos financeiros suficientes que permitissem aos
países da América Latina e Caribe investirem, não somente em
suas capacidades comerciais mas também melhorar
substancialmente a qualidade de vida de seus habitantes.

22. Como Igreja que peregrina no Continente marcado pelas
maiores desigualdades do mundo, nos sentimos intimados por
Nosso Senhor, a tomarmos parte nesse processo de integração,
partindo de nossa própria identidade e como parte de nosso
ministério de reconciliação e de construção de comunhão. Por
isso, estamos colaborando na criação de espaços para diálogos
entre todos os setores-cidadãos, promovendo ao mesmo tempo,
os métodos adequados para a obtenção dos frutos esperados.
Não é fácil realizar esse ministério, no ambiente de
confronto que gera o marco de relações assimétricas existente
dentro de nossos países e principalmente no plano
internacional. Porém é fundamental promover essa
participação, a fim de gerar condições de governabilidade
numa relação justa e solidária entre Estado e Sociedade
Civil.

23. No cumprimento de nossa missão nos comprometemos a
promover um amplo processo de participação cidadã que permita
às pessoas e às comunidades informar-se, deliberar, realizar
análises de custo e benefícios, elaborar e fazer chegar suas
propostas a quem corresponder, determinando prazos adequados
e exercendo vigilância social sobre esses processos.

24. Diante da debilidade do tecido social, é nosso dever como
Igreja, colaborar não só no seu fortalecimento, mas também em
sua projeção no sentido de criar uma sociedade em que todos
nos sintamos membros integrantes de uma grande família
latino-americana e caribenha. Para tanto, assumimos o
compromisso de promover a formação política que converta os
cidadãos e as cidadãs em construtores de uma nova sociedade
justa, fraterna, solidária e aberta para Deus. (CF.
Christifideles Laici, 41, Ecclesia in América, 44).

25. Comprometemo-nos a contribuir, partindo de nossa
identidade, na criação de condições econômicas, sociais,
culturais, políticas e ecológicas que assegurem a cada pessoa
o direito de buscar seu destino dentro do destino comum, como
senhor de sua vida, com direito a tomar decisões para si,
para seu núcleo familiar, para a sociedade, com o devido
respeito aos direito do próximo, como pessoa responsável que
vive com outros e para outros, na Verdade e na Justiça.

26. Reafirmamos a opção evangélica pelos pobres e nos
comprometemos a continuar acompanhando a luta pela vida dos
movimentos sociais, camponeses e indígenas, num trabalho
perseverante para construir uma sociedade justa e solidária,
com valores éticos e onde seja possível avançar decididamente
em direção a uma autêntica integração dos povos.

São Paulo, 13 de agosto de 2004.
Departamento de Justiça e Solidariedade
Conselho Episcopal Latino – Americano (CELAM)

Notas:

(1) Cf. Declaração Conjunta Sobre Tratado de Livre Comércio, Estados Unidos – América Central (TLC EEUU – CA),
do Secretariado Episcopal da América Central (SEDAC) e dos Presidentes dos Comitês de Política Nacional e
Internacional da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos (USCCB), páginas 1/3.

(2) Cf. declaração Conjunta Sobre o Tratado de Livre Comércio Estados Unidos – América Central (TLC EEUU – CA),
do Secretário Episcopal da América Central (SEDAC) e dos presidentes dos Comitês de Política Nacional e
Internacional, da Conferência dos Estados Unidos (USCCB) .