O que é a chamada "ALCA Light"
Fevereiro de 2004.
As negociações para a formação da ALCA vinham de arrastando de 1994,
quando foi realizada a primeira cúpula de chefes de Estado das
Américas; ali foram iniciadas as negociações que até agora pouco
avançaram. Em 1994, era grande a ambição dos EUA em relação à
formação de uma área de livre comércio "do Alasca à Terra do Fogo",
e que abrangesse o máximo de setores da economia e dos processos de
tomadas de decisão nos países do hemisfério.
Desde então, um conjunto de fatores foi tornando o projeto original
da ALCA cada vez mais difícil de ser implementado: a resistência de
amplos setores sociais ao longo do continente, os impactos negativos
do NAFTA (Acordo de Livre Comércio da América do Norte, que inclui o
Canadá, EUA e México), a percepção de alguns governos da região da
perda de capacidade decisória que poderia resultar deste acordo, e
até mesmo a apreensão de alguns setores ligados às indústrias
nacionais.
A partir da reunião ministerial de Miami, realizada em novembro de
2003, as negociações passaram a traduzir de forma mais clara o
ambiente de dúvidas e de resistências cada vez mais presentes na
maioria dos países do hemisfério. Diante da impossibilidade de se
avançar no processo negociador tendo como referência a ALCA
abrangente concebida pelos EUA há quase uma década, os países co-
presidentes da ALCA (Brasil e EUA) apresentaram um novo formato para
a condução das negociações, que está expresso nos itens "A Visão da
ALCA" e "Instruções Gerais" da Declaração Ministerial de Miami que,
resumidamente, define que de agora em diante a ALCA será negociada
em dois pisos:
1) Um piso mínimo, ou seja, uma base comum aos 34 países, onde
deverão ser incluídas obrigações em todos os temas que sempre
existiram nas negociações da ALCA (acesso a mercados,
agricultura, serviços, investimentos, compras governamentais,
propriedade intelectual, política de concorrência, subsídios,
anti-dumping e direitos compensatórios, e solução de
controvérsias). A reunião de Miami, no entanto, não definiu o
grau de compromisso a ser assumido pelos 34 países em cada um
destes temas, e adiou estas decisões substantivas para a reunião
do CNC (Comitê de Negociações Comerciais), realizado em Puebla
entre os dias 2 e 6 de fevereiro de 2004, onde os vice-ministros
tinham a missão de tentar dar substância ao acordo político de
Miami. Puebla deveria definir, por exemplo, se o chamado piso
mínimo seria de fato mínimo ou se ficaria mais próximo da
proposta de ALCA cheia dos EUA (com amplos compromissos em cada
tema, na maioria dos casos transcendendo em muito as regras da
OMC);
2) Um segundo piso, onde os países podem assumir níveis distintos de
compromissos adicionais no âmbito da ALCA, por meio de acordos
bilaterais (acordos entre dois países ou blocos de países) e/ou
plurilaterais (acordos entre mais de dois países ou blocos, mas
sem incluir a totalidade dos países membros). As regras e
procedimentos para as negociações de tais acordos seriam
definidas em Puebla. É bom lembrar que os EUA, na semana anterior
à reunião ministerial de Miami, anunciaram acordos bilaterais com
Colômbia, Peru, Equador, Bolívia, Panamá e República Dominicana,
em uma clara tentativa de isolar o Mercosul.
O que está em jogo, tema por tema
Temas - O que está em discussão
* Agricultura
Os pontos fundamentais que estão sendo debatidos no tema agricultura
dizem respeito às tarifas para o comércio dos produtos agrícolas
entre os países, aos subsídios dados por cada um dos países a seus
produtos agrícolas ou, especialmente, à exportação destes, e a
outros apoios nacionais aos agricultores (por exemplo, no caso dos
EUA, os créditos à agricultura são um forte apoio interno). Mais
recentemente, representantes brasileiros e de alguns outros países
(como a Venezuela) têm procurado levar em consideração os temas
ligados à agricultura familiar, mas embora essa preocupação já tenha
aparecido nas discussões da OMC, é ainda pouco expressa no processo
negociador da Alca. No tema Agricultura, os negociadores norte-
americanos estão fortemente amarrados por sua legislação nacional
para fazer concessões, assim como processos eleitorais em alguns
países (como EUA e Canadá) limitam as possibilidades de seus
negociadores. Nos países do Mercosul, bloco que tem o Brasil como
economia mais importante, entretanto, os interesses do agronegócio
acabam pressionando os negociadores a conseguir concessões nesta
área, mesmo que ao custo de concessões em outras áreas estratégicas.
* Acesso a Mercados
Discussão semelhante a do tema agricultura (tarifas, subsídios e
apoios internos) para os demais produtos, isto é, fundamentalmente
os produtos manufaturados são o principal objetivo deste grupo. Os
problemas com a posição norte-americana são os mesmos (fortes apoios
internos à produção). Para países como o Brasil, também é sensível a
discussão, uma vez que uma abertura ampla de mercados em alguns
setores industriais poderia significar forte restrição às
possibilidades de desenvolvimento nacional, com reflexos importantes
no emprego industrial. Juntamente com agricultura e os temas ligados
a subsídios e anti-dumping são os temas efetivamente referentes a
comércio. Os países do Mercosul têm acenado com a possibilidade de
zerar tarifas, desde que todos o façam, em prazos delimitados para
todos os produtos (prazos limite : imediato, cinco anos, 10 anos, e
mais de dez anos). Essa proposta pode representar evidentemente a
eliminação de setores produtivos no interior dos países que não
possuam competitividade em relação aos outros países da Alca no
momento do zeramento das tarifas, ou a setores nascentes.
* Serviços
Sob o guarda-chuva deste tema incluem-se coisas tão diversas como
serviços profissionais (consultoria, auditoria, contabilidade,
serviços médicos), comerciais (cadeias de alimentação ou lojas, por
exemplo), serviços culturais e educacionais (que desta forma seriam
tratados como mercadorias), serviços ambientais (água e esgoto),
serviços financeiros (bancos, seguros), ou os referentes a
telecomunicações, entre outros. Sobre estes últimos (serviços
financeiros e telecomunicações) os EUA propõem inclusive capítulos
específicos no processo de negociação (esse mesmo mecanismo é
proposto nas negociações entre o Mercosul e a União Européia). Não
são temas propriamente de comércio entre países. Os EUA aproveitam
essa discussão também para forçar cláusulas referentes a defesa de
seus investidores, o que deveria ser tratado no tema "investimento".
Sobre os temas a entrarem em negociação aqui existe também uma
polêmica sobre o processo, se por listas positivas (isto é, só
entram os setores que estiverem listados, como é o caso na OMC) ou
listas negativas (entram todos os setores menos os que estiverem
listados), como é a proposta dos EUA, embora no período mais recente
esteja predominando a idéia de Seguir os parâmetros da OMC para o
processo Alca. No âmbito do processo negociador Alca, o Mercosul em
geral, e o Brasil em particular, relutam em discutir esse tema, e os
países menores, como os do bloco do Caribe (Caricom), pretendem que
sejam levadas em consideração as diferenças de tamanho entre as
economias.
* Investimentos
As discussões nesse tema dizem respeito a garantias para os
investidores dos países participantes do acordo, e a posição dos EUA
é tentar garantir um capítulo de investimentos na Alca similar ao do
Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte, entre EUA,
Canadá e México), que tenta reproduzir as propostas do malogrado AMI
(Acordo Multilateral de Investimentos), naufragado nas discussões
entre os próprios países desenvolvidos no âmbito da OCDE
(Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). Esses
mecanismos permitem inclusive que empresas processem Estados
Nacionais, e que se tenha impedimentos a formulação de leis e regras
nacionais que possam diferenciar ou ferir garantias aos investidores
internacionais. Os EUA propõem ainda uma definição de investimento
que não diferencia o chamado "Investimento Externo Direto" (IED,
investimento propriamente dito) de aplicações de carteira
(investimento meramente financeiro, e muitas vezes especulativo). O
posicionamento brasileiro tem sido no sentido de preservar a
capacidade nacional de fazer políticas industriais e de
desenvolvimento. No âmbito do processo negociador Alca,
representantes brasileiros expressaram pela imprensa pouco interesse
na discussão desse tema no momento, e poderiam limitar essa
discussão à transparência quanto às restrições existentes em cada
institucionalidade nacional, além de que aqui também, como em
serviços, haver uma tendência recente para a aceitação de listas
positivas.
* Compras Governamentais
A discussão aqui é sobre a capacidade dos fornecedores não-nacionais
em competir em igualdade de condições com os nacionais por compras
dos diversos níveis do setor público. Pode ser diferenciada por
valores (por exemplo, até um determinado valor seria preservada a
capacidade de oferecer apenas aos fornecedores nacionais, e daí para
adiante entrariam todos em igualdade na disputa), por níveis
administrativos (se a entra na discussão apenas o nível federal, ou
também os chamados níveis subnacionais, como Estados e Municípios),
se valem também para as empresas do Estado (por exemplo, a Petrobrás
ou a Eletrobrás podem optar ou não por fazerem suas compras apenas
de fornecedores nacionais) ou para todos os setores (o que
envolveria uma pesada discussão quanto as áreas referentes à
segurança nacional, por exemplo). De novo, envolve a discussão sobre
a possibilidade de fazer políticas de desenvolvimento (inclusive
tecnológico) utilizando as compras públicas. Esta discussão também
pode ter forte impacto, dependendo de como se desdobrar, sobre a
produção local, inclusive a agricultura familiar (fornecimento de
merenda escolar por prefeituras, por exemplo). Vários representantes
brasileiros no processo de negociação da Alca afirmaram no período
recente pela imprensa querer restringir a discussão deste tema à
transparência dos processos, se for o caso de discutí-lo.
*Subsídios, Anti-dumping e Direitos Compensatórios
Esses temas complementam os ligados efetivamente a comércio, como
agricultura e acesso a mercados, e tem forte restrição à discussão
por parte dos norte-americanos, que não querem colocar os seus
apoios internos à produção em discussão (ver os temas Agricultura e
Acesso a Mercados).
* Propriedade Intelectual
Regular o desenvolvimento de tecnologia e patentes é o objetivo
deste grupo temático, que de novo não diz respeito propriamente a
comércio. Sua inclusão decorre do fato de, nas discussões da Rodada
Uruguai que deram origem á OMC, os EUA terem forçado a inclusão de
um acerto sobre Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual
Relacionados ao Comércio (conhecido pela sigla inglesa TRIPS). No
âmbito da OMC, por exemplo, a pressão das posições de países como o
Brasil e a África do Sul, somados à mobilização de setores da
sociedade civil inclusive dos países desenvolvidos, conseguiu
relativizar as regras TRIPS para a produção de medicamentos
genéricos, especialmente importante para viabilizar o combate a AIDS
e outras doenças de tratamento caro em países menos desenvolvidos.
Vários representantes brasileiros no processo de negociação da Alca
afirmaram no período recente pela imprensa quererem restringir a
discussão deste tema à transparência dos processos, se for o caso de
discutí-lo. Além disso, vários países (especialmente aqueles em que
a população indígena constitui maioria e/ou percentual importante na
sua população, como Bolívia, Venezuela, Perú, Equador) reforçam
neste item a idéia da proteção a cultura e conhecimentos
tradicionais de suas populações tradicionais.
* Política de Concorrência
A discussão do tema busca adequar e/ou constituir regras
multilaterais que permitam a defesa da concorrência e a regulação de
mecanismos que dificultam a concorrência, como trustes e cartéis.
Vale ressaltar aqui que países como EUA e Canadá tem não apenas
legislações e jurisprudência consolidada sobre o tema há muitas
décadas, enquanto que outros como o Brasil têm regras e agências de
controle da concorrência bem mais recentes, e alguns países nem têm
tradição de discussão sobre o tema. O Mercosul tem em geral
defendido a transparência como ponto importante neste item, mas os
EUA forçam que sob esse assunto possa ser discutido limitações à
existência e ao funcionamento das empresas estatais, por exemplo,
alegando que, por exemplo, seu financiamento com recursos
orçamentários seria um desincentivo à competição nos setores em que
atuam.
* Solução de Controvérsias
Aqui se deveriam pensar os mecanismos para a solução de diferenças
resultantes das interpretações ou de avaliações sobre
descumprimentos dos acordos no âmbito da própria Alca. O tema vem
sendo discutido, mas está esfriado pelas dúvidas referentes à
efetivação dos acordos e aos seus próprios conteúdos.
* Outros Temas
Aqui se incluem vários outros temas que tem tratamento fora dos
grupos negociadores propriamente ditos. Alguns países, como EUA,
querem incluir a discussão de regras trabalhistas e ambientais no
bojo dos acordos, o que tem encontrado restrições por parte de
outros. Participação da sociedade civil uma vez constituída a Alca é
outro tema de discussão aqui (existe uma proposta chilena, apoiada
por vários países, mais criticada pela maior parte da sociedade
civil). Também existe discussão sobre a futura sede, uma vez
constituída a Alca (Miami, Cancún, Panamá e Porto Espanha se
apresentam como candidatas, esta última com o apoio do bloco de
países do Caribe, o chamado Caricom).
Impasses de Puebla
A reunião do Comitê de Negociações Comerciais (CNC) da Alca,
realizada em Puebla, México, em fevereiro deste ano, deveria
transformar as orientações políticas emanadas da reunião ministerial
de Miami (reconformar o processo de negociação da Alca de forma a
permitir que o processo negociador se dê em dois níveis) em
orientações práticas para que os diversos grupos temáticos pudessem
discutir mais tecnicamente como encaminhar as conclusões do processo
negociador em si. Entretanto, a reunião de Puebla terminou em um
recesso, depois de configurado um impasse no processo de negociação.
A raiz do impasse diz respeito a como adaptar, a partir das
definições de Miami, as ambições dos vários países e/ou blocos de
países em relação à nova configuração da Alca em dois pisos. O
desenho em dois pisos, em que existe um primeiro piso de direitos e
obrigações aplicáveis a todos os países, e um segundo piso de
compromissos adicionais no formato plurilateral, faz com que os
diversos países e/ou blocos queiram trazer para a parte comum de
direitos e obrigações ("piso 1") o maior conjunto possível de suas
ambições no processo negociador, jogando a maior parte dos assuntos
dos quais quer se ver livre de compromissos (ou não pode aceitá-los)
para piso referente aos compromissos adicionais.
Assim, em relação aos temas tradicionais de comércio, em especial à
agricultura, onde prevalecem os interesses do agronegócio, o
Mercosul coloca uma enorme ambição no chamado "piso 1", ao mesmo
tempo em que se coloca em uma posição predominante defensiva quanto
ao estabelecimento de regrais gerais para temas como serviços,
investimentos, propriedade intelectual e compras governamentais, por
exemplo, que possam ser limitadores ao processo de desenvolvimento
nacional (em especial se envolverem direitos amplos aos países mais
desenvolvidos).
Por outro lado, em defesa de suas corporações empresariais, ou das
possibilidades destas, os EUA e o Canadá, assim como outros países
com o qual esses dois já possuem acordos mais amplos (e que, visto
do ponto de vista do Mercosul, colocaram limites às suas
possibilidades de desenvolvimento), colocam enormes ambições
negociadoras em temas novos (como serviços, investimentos,
propriedade intelectual e compras governamentais, exatamente aqueles
nos quais o Mercosul apresenta enormes limites às suas
possibilidades de negociação), e rebaixam bastante suas
possibilidades negociadoras nas áreas de acesso a mercados e
agricultura para o piso comum, seja por restrições de suas
legislações nacionais, seja por não quererem impactos em seus
processos eleitorais nacionais em curso, seja mesmo para forçar uma
atitude negociadora mais flexível por parte do Mercosul e dos países
do Caribe.
A existência de posições fortes e claras, e pouca flexibilidade
negociadora dos vários lados, sobre como orientar os grupos
negociadores em seu funcionamento levou a não conclusão da reunião
do CNC de Puebla. Configurado o impasse, que inviabilizava a
orientação que deveriam emanar para os grupos, os representantes das
delegações presentes a Puebla preferiram suspender a reunião por
algumas semanas, para retomá-la em meados de Março. O objetivo deste
"recesso" é, consultados novamente os respectivos governos, ver
quais os efetivos limites das posições expressas em Fevereiro, e se
será ou não possível neste momento orientar os grupos negociadores
para que estes voltem a funcionar, de modo a tentar concluir o
processo negociador ainda este ano.
Caso não seja possível chegar a emanar orientações para os grupos,
ou no caso das orientações que possam sair do CNC sejam tão
genéricas que, de fato, não ofereçam condições de trabalho aos
grupos, os prazos acordados, ou mesmo todo o processo negociador,
podem ser colocados novamente em discussão, assim como a própria
efetivação da Alca.