América Latina: integração e lutas de emancipação

2006-12-06 00:00:00

A América Latina entrou em um novo período político, com grandes potencialidades emancipadoras, cujos contornos e desenvolvimento ainda estão em construção e disputa. As dificuldades são imensas, mas trata-se de uma oportunidade histórica única para conquistar a nossa segunda e verdadeira independência. Nesse contexto, a questão da integração é chave para definir o rumo político a ser tomado pela região.
 
O objetivo deste artigo é sistematizar alguns elementos desse novo período político, analisar as dificuldades e potencialidades da atual conjuntura regional, e colocar alguns desafios que as esquerdas devem enfrentar – em particular em matéria de integração regional – para fazer avançar as lutas emancipatórias na América Latina.
 
Quatro processos
 
Correndo os riscos intrínsecos a toda comparação histórica, mas com a intenção de ressaltar a importância do atual período político, podemos assinalar – como outros autores já fizeram – que esta é a quarta vez em que se vive uma onda emancipadora em nossa região nos últimos duzentos anos.
 
É óbvio que não foram processos homogêneos. No entanto, tiveram como denominador comum seu caráter de alcance regional e o potencial de ruptura com a ordem colonial e imperialista apresentado por todos eles. O primeiro foi registrado quando da grande onda de lutas pela independência, que teve seu epicentro entre os anos de 1810 e 1830. Conquistamos a independência formal da Espanha e de Portugal; não rompemos, porém, as correntes da dependência econômica que nos prendiam às outras metrópoles que em breve se transformariam no imperialismo hegemônico. O segundo expressou-se na ascensão do nacionalismo nos anos 1930-40. Este tentou criar as bases materiais para a independência econômica, mas faltou uma vontade política que a levasse adiante até o fim. Assim, passada a sua primeira fase, tornou-se um fracassado projeto que, sem contestar a dependência, pretendia impulsionar um desenvolvimento associado ao imperialismo. A terceira onda foi inaugurada pela revolução cubana de 1959. Teve um tremendo impacto político-ideológico sobre a região e gerou novas condições para realizar a tarefa proposta por Mariátegui (no Peru, em 1928) de pensar um socialismo indo-americano como criação heróica e não como simples cópia de doutrinas importadas das metrópoles. Não conseguiu escapar, porém, do feroz cerco de ditaduras militares que o imperialismo americano e as oligarquias locais a ele aliadas impuseram à região nas décadas que se seguiram (2).
 
Cada um desses processos teve suas conquistas, suas limitações e suas derrotas. Mas o que o atual processo apresenta de novo é que ele consegue reunir, ao mesmo tempo, condições econômicas, políticas e ideológicas para gerar um projeto de emancipação de escala regional. Para discutir como alcançá-lo, vamos nos deter primeiramente na análise dos antecedentes do atual período, o que nos dará uma visão sobre as condições sob as quais devemos operar.
 
Neoliberalismo, um projeto contestado
 
A meados da década passada, o discurso dominante era o do “fim da história” e de que “não há alternativas”. Naquele então, nosso continente estava coberto de governos neoliberais obedientes ao de Washington; e Cuba, solitária, atravessava o deserto do “período especial”.
 
O neoliberalismo tivera entre suas pioneiras duas ditaduras militares sangrentas, a chilena (1973-1989) e a argentina (1976-1983), mas tornou-se projeto dominante quando, nos anos 1980, foi assumido pelo imperialismo norte-americano (com o governo Reagan) como programa a ser implementado mundialmente.
 
As crises do programa social-democrata europeu a partir do final dos anos 1970 e do socialismo burocratizado na década de 1980, assim como o fim da União Soviética em 1991, abriram espaço para que o projeto neoliberal se tornasse ideologicamente hegemônico nesse período. Ao mesmo tempo, o “fim da guerra fria” alimentou, em alguns círculos, a ilusão de um mundo sem conflitos que não se verificou: surgiu uma ordem mundial mais injusta, mais instável e mais violenta que a anterior, regida pela unipolaridade do imperialismo norte-americano.
 
Entendo que ainda nos encontramos sob o peso dessas duas marcas no nível mundial, de imposição do programa neoliberal e da unilateralidade da atuação do imperialismo norte-americano. Entretanto, trata-se de uma ordem que apresenta rachaduras (ainda que sejam rachaduras regionais com características e potencialidades políticas muito heterogêneas). De todas elas, a que mais elementos emancipatórios incorpora é precisamente a que vivenciamos na América Latina.
 
Em nossa região, a conjuntura deu uma guinada. Verificamos um verdadeiro despertar dos povos e o neoliberalismo é, por aqui, um projeto posto em xeque. Poderíamos estabelecer o inicio da linha do tempo da conjuntura atual em diversos pontos. E, certamente, a depender da localização geográfica de quem observa, haveria percepções diferentes de acordo com as experiências nacionais. O antecedente mais distante poderia ser o Caracazo de 1989 na Venezuela, primeira revolta massiva contra um ajuste neoliberal, sangrentamente reprimida pelo governo do então presidente Carlos Andrés Pérez. Entre os antecedentes estaria também, sem dúvida, o levantamento indígena zapatista mexicano contra o TLC (Tratado de Livre Comércio) com os Estados Unidos e Canadá em janeiro de 1994. Seria, porém, a rebelião popular em Cochabamba, Bolívia, em 2000, contra a privatização da água, a que mais claramente poria em evidência que já se tinha alcançado uma nova conjuntura, onde a pressão popular era capaz de bloquear a aplicação do programa neoliberal. Nessa cronologia, deveríamos acrescentar também os momentos nos quais, desde o final da década passada, movimentos populares expulsaram presidentes neoliberais no Equador, Paraguai, Argentina e Bolívia. E quando os povos, através de seu voto, procuraram alternativas, começando pelas eleições venezuelanas de 1998, quando Hugo Chávez foi eleito presidente, inaugurando uma série que cresceu expressivamente nos últimos anos com o Brasil, a Argentina e o Uruguai, e teve seu ponto alto com a recente eleição de Evo Morales na Bolívia (3).
 
Contudo, o fato de haver questionamento e oposição ao neoliberalismo não quer dizer ainda que outro projeto já esteja claramente lançado. Significa, sim, que o neoliberalismo é um programa que se esgotou, porque não oferece mais perspectivas de governabilidade (pelo menos não no marco democrático), e que está aberta a temporada de formulação, construção e aplicação de alternativas. Por outro lado, não existe um programa alternativo já pronto e válido para todos os casos. Por último, o desenlace da conjuntura vai depender da constituição de vontades políticas capazes de impulsionar cada país em particular e a região como um todo na direção de um projeto de superação do neoliberalismo; e só serão “capazes” se construírem maiorias políticas (portanto, o tema chave é o da “hegemonia” nos processos nacionais).
 
Isso não quer dizer, porém, que no processo desse parto não estejam já presentes indicações do sentido geral das mudanças. Por exemplo, não é um detalhe menor que na Cúpula de Presidentes de Mar del Plata, em novembro de 2005, o próprio presidente Bush, com ajuda de seus testas-de-ferro regionais (com o mexicano Vicente Fox na dianteira), não tenha conseguido forçar a retomada das negociações da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), bloqueada pela oposição dos governos da Venezuela e do Mercosul. Leve-se em consideração que a ALCA era, desde os tempos do auge neoliberal, a principal estratégia imperialista para completar sua dominação sobre a região. Pelas contas de Clinton primeiro, e Bush depois, o ano de 2005 seria com a ALCA para o continente todo (excluindo Cuba) equivalente ao de 1994 com o NAFTA na América do Norte. Não foi, e não há perspectiva de poder retomar o projeto no curto prazo.
 
O que restou ao governo norte-americano é pressionar os governos nacionais mais suscetíveis à sua coerção – Chile, Colômbia, Peru, países da América Central e República Dominicana – para impor TLCs bilaterais. Isso, que é um avanço do imperialismo norte-americano a través das partes de menor resistência (graças a presença de governos entreguistas) é também sua confissão de derrota em relação ao todo.
 
Império atolado
 
Existem muitos indícios de que o auge do imperialismo norte-americano já passou. Seu principal argumento – sua superioridade militar convencional – ficou atolado no Iraque. Suas políticas para o mundo árabe e muçulmano fracassaram ao não estabilizar um arco de aliados estratégicos; pelo contrário, introduziram novos elementos de instabilidade para seus antigos aliados. Tendo entrado militarmente de forma maciça, não tem como sair tão cedo de lá e – como tudo indica – não conta com forças suficientes para duas frentes de conflitos agudos ao mesmo tempo.
 
O unilateralismo de sua política internacional despertou o “nacionalismo” em outras potências capitalistas que, sem capacidade de enfrentá-lo militarmente, se sentem atraídas pela idéia de procurar um novo mapa geopolítico – ousadia facilitada pela ausência do “perigo comunista”.
 
Sua economia (tomada individualmente) continua sendo a principal do planeta, mas em declino e com problemas crescentes, cada vez mais dependente do financiamento do resto do mundo, em particular da China.
 
Ao mesmo tempo, vemos que voltam a crescer movimentos populares de contestação dentro dos Estados Unidos. O caso mais evidente é o das gigantescas manifestações promovidas por imigrantes (especialmente latinos) em defesa de seus direitos no passado 1º de maio de 2006. Mas também têm seu impacto as coalizões contra a guerra e as que impulsionam campanhas contra as políticas das corporações multinacionais norte-americanas.
 
É graças a esse quadro conjuntural que a América Latina não é hoje a primeira prioridade estratégica do imperialismo norte-americano. Também foi em outras conjunturas como esta, em que as cordas com as quais o imperialismo amarra a periferia se soltaram um pouco, quando houve maiores espaços políticos para projetos emancipatórios. Mas isso não significa que em termos geopolíticos nossa região tenha perdido seu caráter de área natural de exercício da hegemonia norte-americana (razão pela qual não se deva esperar ajuda de outras potências).
 
Esquerda, crise e reorganização
 
É importante assinalar que as esquerdas (sociais e partidárias) chegam nessa nova conjuntura depois de atravessar uma forte crise política e ideológica na região (e no mundo). Ao comparar o cenário de meados dos anos 1980 com a primeira parte da década seguinte, observam-se dramáticas transformações no mapa das esquerdas latino-americanas, com deserções importantes, com a dissolução de organizações políticas que tiveram peso, com a perda de referências programáticas, etc., ao mesmo tempo em que as forças conservadoras ocupavam sua hegemonia ideológica e política neoliberal na maioria dos países.
 
No entanto, a crise das esquerdas de quinze anos atrás teve um inesperado resultado positivo: desfez as fronteiras internas (muitas vezes sectárias) entre tradições, partidos e facções estabelecidas pelas experiências do século XX. Esse foi o novo terreno fértil para as amplas convergências populares ocorridas no período seguinte, de retomada das mobilizações populares e contestação da legitimidade do projeto neoliberal.
 
Uma de suas características, que além de diferenciá-la de outros momentos históricos lhe confere potencialidades (embora também dificuldades) que ainda não é possível medir, é que o atual processo acontece sem que haja previamente alguma hegemonia político-ideológica instalada ou em vias de se instalar no cenário político popular de nosso continente. Isso se deve, provavelmente, a que ainda estamos num período de reconstrução das esquerdas sociais e partidárias depois da queda do “socialismo real”, que, junto com o vendaval neoliberal, uns quinze anos atrás, teve um tremendo impacto sobre a configuração das forças progressistas. Mas tudo indica que faremos deste traço atual um princípio para que finalmente possamos construir a libertação dos povos pensando buscando a unidade mas recusando hegemonismos.
 
Uma intensa atividade que partia dos movimentos sociais (ou da “sociedade civil”, se se preferir) abonou esta nova fase. Entre os antecedentes mais importantes, seria importante citar a campanha continental contra os “500 anos de colonialismo” em 1992. Nela, a convergência entre movimentos indígenas, camponeses, de bairros, de mulheres, da cultura e comunicadores populares, etc., apontava para a conformação de novos atores políticos.