Interditar o debate para interditar o futuro
Para quê uma eleição geral, como a que tivemos agora, nos deve convocar? Em tese, para pensarmos em nossos valores mais profundos; em nossa ideologia; nos projetos para o país; em nossas visões de mundo; na sociedade que queremos para nossos filhos; em nossa disponibilidade para participar numa construção social coletiva. Tudo isso deve gerar os critérios subjetivos para escolhermos os que irão nos representar nos Poderes Executivo e Legislativo, para cuidarem de nosso país em nosso nome.
Mas, concretamente, para quê a eleição geral de 2006 nos convocou? Para ouvir histórias policiais; fotos de montes de dinheiro; pessoas algemadas e biografias destroçadas; denúncias de toda ordem a cobrir páginas dos jornais e horas do noticiário televisivo; julgamentos de cunho moralista; frases de efeito sobre esse ou aquele candidato, em competição sobre qual a mais destrutiva.
Projetos para o país? Nem uma só linha no jornal. Valores profundos? Nem um segundo da televisão. Por que chegamos a esse ponto de indigência no debate político? A nosso ver, esta situação tem suas raízes no histórico do governo Lula, por um lado, e nas aspirações da oposição de direita de reassumir o controle do país, por outro.
Tudo pela governabilidade
O governo Lula, desde o início, apostou todas as fichas na “governabilidade”, base de raciocínio político que, no cotidiano, significou alianças com setores tradicionalmente inimigos do Partido dos Trabalhadores (PT). Essa postura afastou as políticas governamentais dos compromissos históricos com os movimentos sindicais; com os camponeses e a reforma agrária; com os indígenas e quilombolas e a demarcação de territórios; com os direitos humanos; com os direitos dos familiares de mortos e desaparecidos políticos pela ditadura militar; com as lutas pela democratização da comunicação, por novas políticas energética e econômica etc.
Ao priorizar a atuação institucional e as alianças com setores de centro e direita, alguns integrantes do governo Lula e do PT adotaram também as práticas de seus novos aliados, baseadas em ações ilegais, porém amplamente utilizadas no meio político, tais como “caixa dois” e trocas de favores e de recursos financeiros, tudo para, ao fim, garantir a tal “governabilidade”.
O primeiro grande efeito de tais atitudes foi a divisão da esquerda aliada do governo Lula. Alguns setores indispostos com tais práticas abandonaram a disputa no interior do PT e fundaram um novo partido, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). O segundo grande efeito foi a desagregação da base social organizada e histórica do Partido dos Trabalhadores, com a disseminação da sensação de frustração, traição, paralisia política e do divisionismo.
Nenhum desses efeitos parecia significar algum problema para o governo Lula e seus novos aliados, confiantes de que podiam dispensar todos esses setores sociais para a sua nova concepção de “governabilidade”.
A “Santa Aliança” da direita
A direita, encarnada pelo PSDB, e a extrema-direita, pelo PFL, ficaram assustadas com o panorama visto da Avenida Paulista: um partido de esquerda, com bases populares ainda fiéis, controla o poder máximo no país e utiliza, para se fortalecer politicamente, de métodos eleitorais da própria direita e de seus próprios “procedimentos” políticos, pouco éticos mas de conhecida eficiência; pior ainda, este governo começa a projetar sua inserção internacional com bastante sucesso.
Soa o alarme da possibilidade real das elites serem afastadas do poder definitivamente e do processo tomar um rumo incontrolável. Na perspectiva do tempo, a disputa política poderia ser transferida para o embate entre o lado moderado do PT, manifestado obsessivamente pelo governo Lula, e seu lado popular, presente ainda nas suas bases sociais, nos seus vínculos com movimentos sociais em todo o país e com uma esquerda latino-americana emergente e em processo de articulação continental. Para as elites do país mais injusto do mundo, essa “raça” pouco confiável precisaria ser desalojada o quanto antes do poder. Este, deveria voltar para suas mãos, onde sempre esteve.
Forma-se, então, a “Santa Aliança”, dos setores de direita, extrema-direita e dos grandes conglomerados da mídia, com ramificações nos três Poderes da República, porém sem algo em que se apegar para levar à frente sua cruzada anti-Lula e anti-PT.
Atiram a esmo no governo e no presidente, como franco-atiradores sem direção, com resultados pífios na opinião pública, que segue apoiando as ações do governo. Providencialmente, porém, quem dá a base real para o início da cruzada “ética” contra o governo são seus próprios integrantes e suas “práticas políticas”, as mais conhecidas dos integrantes da “Santa Aliança”.
Identificados, em série e em reincidência, desde o caso do suborno em escalão menor (caso Valdomiro Diniz); passando pelo caso do “caixa-dois” (vulgo “mensalão”), até o suspeitíssimo caso do dossiê anti-Serra, esta direita busca freneticamente exagerar em suas dimensões e extrair deles o máximo proveito para a recuperação integral das rédeas do poder em nosso país. Conta, para tanto, com a cumplicidade ativa e entusiasmada de praticamente toda a mídia.
A “Santa Aliança” da direita brasileira atira no que o respeitável público vê, ou é obrigado a ver pela sua imprensa, dita livre, ou seja, corrupção e mais corrupção, para acertar no que é camuflado e escondido do público: o poder que lhe escorria pelas mãos, desde 2002.
Suprema ironia: o governo Lula é atacado pela direita exatamente naquilo em que se funde e confunde com ela, devido ao risco de que, tendo continuidade, produza um processo histórico irreversível, fora do controle das elites tradicionais.
O panorama eleitoral
Assim, chegamos ao melancólico panorama eleitoral de 2006: ao invés de projetos para a Reforma Agrária, notas de dinheiro; ao invés de propostas para a ordem internacional, homens algemados; ao invés de compromissos com os povos indígenas e quilombolas, escutas telefônicas; ao invés de planos para a recuperação do meio-ambiente, depoimentos na delegacia.
A “Santa Aliança” conseguiu o que mais queria, com a colaboração ativa daqueles setores que deram a base de realidade para sua agressiva política eleitoral: destruir o debate sobre os rumos do país, pois esse assunto deve, necessariamente, voltar a ser assunto exclusivo daqueles quem sempre mandaram aqui, sem discussão.
O debate subjacente à disputa eleitoral e que lhe dá sentido, o de qual Projeto Nacional o povo brasileiro defende, não deve aparecer, pelo contrário, deve ser rigorosamente interditado.
Aliás, os que uma vez foram ousados o suficiente para tentar interferir em tais rumos e em tal Projeto Nacional, foram mortos e desaparecidos pelos pefelistas e neo-tucanos, por seus funcionários de todos escalões militares e policiais, na sua nunca suficientemente avaliada nem contestada fase ditatorial (1964 – 1985). Uma história também interditada, onde sangue e corrupção mesclam-se em todas as páginas.
Enfim, estamos agora no rumo do segundo turno das eleições presidenciais. Seja qual for o seu resultado, nós, o povo brasileiro, não podemos nem devemos perder de vista o principal: nosso lugar de protagonistas centrais de nossa própria história, clareando nosso Projeto Nacional; reinventando sempre a nossa ação política; fortalecendo, reconstruindo e ressignificando os movimentos sociais do pós-neoliberalismo, reconstituindo-os e ampliando-os sem cessar, como espaços concretos e cotidianos de exercício do Poder Popular.
Brasília, 03 de outubro de 2006.
Paulo Maldos
Assessor Político do Cimi