Chute de us$30,3 bilhões na dívida

2001-09-11 00:00:00

O Banco Central do Brasil denunciou, no último final de semana, um
erro de 30,3 bilhões de dólares no valor da dívida externa: "Isso não é
motivo de estranheza. Pelo contrário. Fizemos uma auditoria para rever
todo o estoque da dívida e tudo foi recalculado", disse o diretor de
política monetária do Banco Central, Sr. Luiz Fernando Figueiredo (Folha
de São Paulo, 01/09/2001).

Causa profunda estranheza, sim, o fato do Banco Central divulgar
que fez uma auditoria, considerando que há poucos dias, prestando
esclarecimentos aos senadores sobre o novo acordo com o FMI, o próprio
Ministro da Fazenda criticou veementemente o Plebiscito da Dívida
Externa, realizado em todo o país na semana da pátria do ano passado,
por iniciativa da Campanha Jubileu Sul, da qual participam diversas
entidades e movimentos sociais.

É de amplo conhecimento público que uma das questões propostas
pelo referido Plebiscito reivindicava a realização da Auditoria prevista
na Constituição Federal (artigo 26 das Disposições Transitórias).
Enquanto esta não acontece, a Campanha está iniciando levantamento de
dados e documentos com vistas à realização da "Auditoria Cidadã da
Dívida".

Se o Banco Central de fato realizou a auditoria anunciada,
entendemos que o relatório completo do referido documento deve ser
disponibilizado para exame dos senadores e da sociedade interessada,
pois, a partir das notícias veiculadas na imprensa, pairam no ar sérios
questionamentos, senão vejamos:

1. Segundo o artigo da Folha, "A equipe do BC afirma que a mudança no
cálculo da dívida externa teve como objetivo adaptar os cálculos
feitos pelo BC a normas adotadas internacionalmente."

Diante disso, perguntamos:

1.1 - Quais são essas "normas adotadas internacionalmente"?

1.2 - Elas estão de acordo com a legislação brasileira?

1.3 - O Senado Federal conhece tais normas?

1.4 - Quais as bases técnicas que embasaram os cálculos adotados na
referida "adaptação"?

2. De acordo com análise feita por Klaus Kleber, publicada na Gazeta
Mercantil de 03/09/2001, "o BC adotou um novo critério, passando a
classificar um total de US$14,1 bilhões de empréstimos de matrizes
para filiais como investimentos diretos..."
Perguntamos:

2.1 - Quais as justificativas para a adoção do novo critério?

2.2 - Quais os reflexos de tal medida no volume de compromissos do
País para com o exterior (juros x remessa de lucros ou dividendos)?

2.3 - Quais são essas matrizes e essas filiais envolvidas na
reclassificação anunciada?

O Diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central, Daniel
Gleizer, respondeu à Folha de SP (02/09/2001) que os financiamentos
entre empresas devem passar pela mesma reclassificação, não tendo
informação sobre a ordem de grandeza dessa parte.

Tememos que possa estar havendo uma séria manobra com essa mudança
de critério. Todos sabemos a diferença de tratamento dado aos
empréstimos e aos investimentos diretos, no caso de moratória da dívida.

Preliminarmente, é preciso ficar claro que não estamos aqui
defendendo tal moratória. Foi o órgão de pesquisa e consultoria baseado
em Londres, Economist Inteligence Unit, que emitiu relatório afirmando
que o Brasil está entre os países emergentes, ao lado da Argentina e
Turquia, "com mais chance de não honrar suas dívidas externas" (Folha de
São Paulo de 25/07/2001).

Sabemos que, caso viesse a ser decretada a moratória da dívida
externa brasileira, ficariam suspensos os pagamentos dos juros e
parcelas de amortização relativos aos EMPRÉSTIMOS. Enquanto isso, ainda
que seja decretada a moratória, os valores que ingressaram no país como
INVESTIMENTO DIRETO poderão continuar saindo livremente, sob forma de
lucros, dividendos ou ainda de retorno do próprio capital investido.

Além disso, enquanto os empréstimos seguem um cronograma de prazos
de pagamento, sendo remunerados a taxas de juros pactuadas previamente e
(teoricamente...) controladas pelo Banco Central, o investimento direto
pode sair do país quando bem entender, rendendo lucros e dividendos de
acordo com o desempenho da empresa e fugindo a qualquer controle por
parte do Banco Central.

Precisamos exigir mais transparência nesse processo.

O agradável e surpreendente anúncio de redução de 30,3 bilhões de
dólares no montante de nossa dívida externa pode, na verdade, estar
ocultando outro meio de propiciar mais garantias e crescentes ganhos ao
capital internacional que, depois de muito bem remunerado como
empréstimo, na iminência de algum risco, se reveste da forma de
investimento direto, garante altos lucros e vai embora quando quer.

3. A outra parcela do corte, no valor de US$16,2 bilhões, se refere a
dívidas que já haviam sido pagas, pasmem, sem que o Banco Central
soubesse!!!

Essa demonstração de total falta de controle é seríssima, devido
ao conceito do país diante da comunidade financeira internacional e
agências de risco. Um erro grosseiro como esse certamente afetou as
condições dos acordos firmados junto ao FMI por este governo, gerando
situação mais gravosa para o país. Será que é só isso ou essa caixa
preta esconde muitas coisas mais? A reação nervosa do Ministro Malan no
depoimento aos senadores, em 14/08/2001, nos dá a nítida impressão de
que o governo tem algo a esconder.

Em entrevista publicada na Folha de São Paulo (02/09/2001), o
Diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central, Daniel Gleizer, foi
bastante evasivo quando questionado sobre os meios de pagamento da
considerável quantia de 16,2 bilhões de dólares, não captados pelos
sistemas do órgão. Disse tratar se de "possíveis remessas por CC-5
[contas de não-residentes para enviar recursos ao exterior] do devedor
para o credor; empresas que recompram seus próprios papéis [certificados
que representam dívida]; conversões de dívidas em investimento direto."

Ora, uma justificativa lacônica como essa é inconcebível em se
tratando de montante superior ao que o país obteve junto ao FMI no
acordo que acaba de se ser firmado.

Além disso, todos conhecemos o estigma das contas CC-5, "pelas
quais o dinheiro pode ir e vir do país sem qualquer controle ou
restrição, à maneira de um bom e confiável paraíso fiscal" (Klaus
Kleber, em artigo já citado). Devemos exigir todos os documentos que
embasaram as alegadas operações de remessas via CC-5, recompra de
títulos e conversões de dívidas.

Às vésperas do "Grito dos Excluídos", não há como calar diante de
tanto descaso para com as contas externas brasileiras. Que o relatório
da anunciada auditoria seja aberto para o devido exame e conferência!
Caso contrário, sentimo-nos autorizados a imaginar que se trata de um
tremendo chute ...

* Maria Lucia Fattorelli Carneiro é presidente do Unafisco Sindical
DS/BH e coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida - Campanha Jubileu
Sul