Laboratório político
O quadro político brasileiro constitui, nos dias de hoje, um imenso laboratório. Nessa perspectiva, os desacertos e acertos do governo Lula, consciente ou inconscientemente, prestaram um grande serviço à ciência política e, quem sabe, ao futuro do país. A crise que se instalou e se arrastou no decorrer de 2005 ajudou a desnudar o que se pode chamar de “pensamento único da esquerda”. As turbulências no Planalto Central e na cúpula do PT abriram espaço para a emergência de diferentes pontos de vista no conjunto das esquerdas. Criou-se um terreno fértil e fecundo para uma crítica menos policiada, mais livre e transparente. Grupos até então tímidos diante do pensamento hegemônico ousam erguer a cabeça e a voz para dizerem o que pensam. Amplia-se o leque das opiniões e até das contradições internas.
Não é novidade para ninguém que o tal do “pensamento único da esquerda” formou-se a partir da luta sindical, tendo como referência mais imediata o ABC paulista. Por isso carrega potencialidades, sem dúvida, mas contém uma série de vícios embutidos. Em termos muito amplos e simplificados, mais do que a transformação das relações sociais de produção, antagônicas sob a ordem capitalista, o sindicalismo busca adaptar-se a esse sistema e, dentro dele, ampliar e garantir a fatia correspondente aos trabalhadores e trabalhadoras. Isso sem falar do corporativismo, do autoritarismo, do centralismo e de uma série de outros “ismos” que têm raízes no berço em que nasceu o PT e no leite que bebeu na infância. Não podemos esquecer, por outro lado, que tal “pensamento único” herdou também as potencialidades e os vícios de outras berços, tais como, os movimentos estudantis, as comunidades eclesiais de base, as pastorais sociais, os intelectuais de esquerda, etc.
Desnudado e quebrado, o “pensamento único” põe a nu seus estilhaços fragmentados. No campo dos movimentos pastorais sociais, por exemplo, as diferenças e divergências emergem com mais ousadia do que nunca. Num extremo, há os que já se denominam sem-partido (mais um rosto na multidão dos “sem”) e, em alguns casos, fazem até apologia do voto nulo. Do lado oposto, há os que procuram preservar a todo custo a imagem do mito Lula, míopes ou cegos às turbulências do cenário político. Entre os dois extremos, delineiam-se outras posturas cujos matizes apresentam um leque bem variado das opiniões políticas. Uns, decepcionados, pulam sem mais para o PSOL; outros, mais críticos, insistem na tentativa de re-fundar o PT sob novas bases; e outros, ainda, se mantêm à distância de tudo, indiferentes e apáticos em pleno ano de eleições. Não podemos esquecer, ainda, os sem rumo, perdidos, sós e órfãos de um pai golpeado de morte.
Enquanto uma minoria crescente propaga o “voto nulo” como um direto, depois de tudo o que nos revelou o ano político de 2005, uma boa parte de “petistas fiéis” aposta na re-candidatura de Lula como um mal menor. Se não trabalharmos pela reeleição de Lula, a direita retoma o poder e aí será difícil pensar em outra experiência popular. Mas aí os defensores do voto nulo perguntam: mas o Lula hoje não é a própria direita, travestida com a retórica da esquerda? Ao que respondem os “petistas fiéis”: não é hora de lavar as mãos e cair fora, como se nada tivéssemos a ver com tudo isso. Mais do que nunca temos de arregaçar as mangas, sujar as mãos, e tentar construir uma alternativa viável, limpar o partido e seguir adiante. Mas os sem partido voltam à carga: Lula e os outros candidatos representam, na verdade, um Estado democrático que não é senão o suporte jurídico-formal do neoliberalismo. Essa “democracia formal” nada tem a ver com os problemas reais do povo. Segundo eles, hoje “o voto nulo é o voto consciente”, na medida em que representa uma resposta legítima à crise que varreu o país. Se essa resposta for maciça e abrangente, o efeito pode ser ao mesmo tempo devastador e positivo.
Isso é discurso da direita, argumentam os “petistas fiéis”. A direita procura jogar tudo no mesmo saco para desautorizar qualquer alternativa popular. Igualando o Lula e o PT a todos os outros políticos e partidos, a direita desqualifica toda a experiência organizativa acumulada nas últimas décadas. Para isso conta com a conivência da grande imprensa. Mas os sem-partido não se entregam: o voto nulo pode ser o aviso e a porta de entrada para uma reforma política real e profunda no país. Além de trazer à superfície o descontentamento popular, ele abala os fundamentos da estrutura estatal viciada, dos tradicionais “donos do poder”. Abre espaço para repensar em profundidade os rumos da política brasileira. Bem... nem precisa dizer que o debate é infindável e que os argumentos se misturam, se confundem e se alternam o tempo todo.
No meio da polêmica, hoje rica e plural, é possível extrair algumas lições. A primeira delas é que a eleição de Lula inflou demais o balão das expectativas populares. Desencadeou anseios de mudança muito acima da capacidade real de mobilização. Inversamente, a correlação de forças das organizações sociais estava muito aquém dos anseios gerados pela subida de Lula ao Planalto. Resultado: hoje as expectativas retornam ao interior dos movimentos sociais e adquirem seu tamanho real. Desfazem-se ilusões, põem-se os pés no chão. Redescobre-se a consciência de que as mudanças não virão de cima. As expectativas de mudança voltam à lenta e dura tarefa das ruas. As contradições sobre as quais o Lula se sentou no trono revelam-se em toda sua nudez.
Outra lição é que não há salvador da pátria. O “voto de cabresto”, em não poucos casos, foi substituído pelo que se poderia chamar “voto de transferência”. Ou seja, ao votar o eleitor transfere para o seu representante político o próprio direito e dever de cidadania. Vota e espera as mudanças de camarote, como um torcedor de futebol. Simplesmente deixa de lado a responsabilidade de acompanhar e controlar as ações políticas dos eleitos. Não é à toa que a Assembléia Popular Mutirão por um Novo Brasil, realizada em outubro de 2005 na cidade de Brasília, com mais de 8 mil pessoas, insistia na necessidade de passar da democracia representativa para a democracia direta, com verdadeira participação popular. E insistia também na necessidade de novos canais, mecanismos e instrumentos de controle e fiscalização da rex publica.
Em terceiro lugar, a lição da autonomia dos movimentos sociais. A palavra autonomia, aliás, tem sido uma das mais utilizadas nas análises do momento político atual. Muitos se arrependem de ter “investido” tanto tempo, dinheiro e energias na via partidária. Outros indignam-se com a facilidade de manipulação das forças sociais pelo poder político. Uns e outros concluem que a via partidária é apenas um entre tantos caminhos a serem seguidos. O importante agora é fortalecer a sociedade civil em seus movimentos, associações, ONG’s, pastorais, etc. Paradoxalmente, esse fortalecimento, ao fazer frente ao PT no poder como seu contraponto, ajuda o próprio PT a melhor definir seu papel. Define com mais precisão as funções de cada instância. Estabelecer parcerias, sim, mas não confundir os contornos de cada agente social.
Por fim, a lição de que é preciso desfazer-se da promiscuidade entre movimentos sociais e partidos, entre estes e o governo, entre pastorais sociais e políticas públicas, entre o governo e as forças da sociedade civil, entre público e privado, etc. Quando cada instância respeita sua natureza e seu papel, o confronto ganha em possibilidades alternativas. O diálogo torna-se mais tenso, sem dúvida, mas também mais rico, plural e diversificado. Aliás, a independência e a autonomia é conditio sine qua non para o próprio diálogo e para a busca de parcerias.
É nesta perspectiva que se pode falar em rompimento do “pensamento único de esquerda”. A crise política de 2005, como toda a crise, é ambígua: está prenhe de riscos e potencialidades. Entre os riscos, pode-se falar da tentativa de passar um verniz no móvel velho e vendê-lo como novo. O discurso de que “errar é humano”, ou o slogan “levanta a cabeça, sacode a poeira e dá a volta por cima”, por exemplo, cheira a impunidade e a um continuísmo acrítico e extremamente prejudicial ao futuro político do país. O mesmo se pode dizer da absolvição, pela Câmara Federal, dos deputados envolvidos com o esquema corrupto do “mensalão”. Ou ainda o risco da reeleição como prioridade absoluta, relegando a segundo plano a necessidade de um programa de governo. Uma vez mais, o projeto de país acaba sendo substituído pelo projeto de poder.
Quanto às potencialidades da crise, vale repetir que o terreno torna-se fértil para a reflexão, a auto-avaliação e a mudança de práticas sociais e de rumos. Não basta apontar o dedo em riste para a cúpula do governo e do PT. Se é verdade que na trajetória ascendente para a conquista da Presidência houve traição à história, ao programa e à ética do partido (a “Carta ao Povo Brasileiro”, p.ex.), também é verdade que, desde suas raízes, ele carrega limites e vícios embutidos nas práticas cotidianas dos agentes e militantes. Tudo isso deve ser avaliado com coragem e seriedade. De nada ajudam as posturas apologéticas, míopes, cegas ou céticas. De nada adiantam as fugas para relativismo ou o absenteísmo!
É neste sentido que o Brasil de hoje converteu-se num imenso laboratório da ciência política. Há um espaço aberto, um campo vasto, para atitudes menos rígidas, menos dogmáticas e mais flexíveis, plurais e “ecumênicas”. “O rei está nu!”. A crise de 2005 desmascarou, uma vez mais, as raízes históricas e estruturais do Estado brasileiro e do estilo de fazer política no Brasil. Aprender as lições dessa crise é evitar repetir seus erros, o que exige análises profundas e abrangentes. É preciso desvendar o fio condutor dessa estrutura política viciada, na tentativa de abrir novas portas e novas janelas. Este momento crítico é solo fecundo para novas experimentações, novas combinações, novos caminhos e novos horizontes, desde que não se perca de vista os problemas reais da população, bem como as forças reais de transformação. Não temos mais o direito de ilusões; utopias, sim, expectativas ilusórias não.
Sobre isso, convém olhar com mais cuidado para chamada “esquerdização política” da América Latina. É verdade que as eleições no continente vêem trazendo à luz do dia um clamor sufocado, um protesto popular que se desafoga nas urnas. Também é verdade que por trás dessa votação expressiva nos partidos de esquerda podemos constatar uma crescente organização indígena e popular, canalizada para o exercício formal da democracia. Na raiz dessa manifestação encontram-se, sem dúvida, fartos sinais da crise do modelo neoliberal nos moldes do “consenso de Washington”, do FMI e da tentativa de implantação da ALCA. A insatisfação popular parece crescer na exata proporção desses indícios de esgotamento do modelo.
O problema é que os chamados partidos de esquerda, ao alcançarem o poder, tendem quase sempre para o centro, quando não para a direita pura e simplesmente. A pergunta é inevitável: pode-se falar de verdadeira esquerdização na América Latina pela via formal da política partidária? Dentro da estrutura do Estado latino-americano, é possível avançar um projeto popular? A grande ironia do destino é que, salvo raras exceções, os partidos de esquerda no continente estão sendo chamados a administrar o estágio final da crise do neoliberalismo. As forças de direita transferem para a esquerda o ônus político de gerir essa crise, ficando com o bônus econômico e financeiro. Pior ainda, essa gestão traz embutido o perigo de manipulação, apaziguamento e neutralização dos movimentos sociais. Em alguns casos, aliás, o perigo já se tornou realidade.
Não podemos esquecer, ainda, que cada experiência tem seu contexto histórico determinado. As trajetórias da Venezuela, da Bolívia, do Brasil, do Chile, entre outras, têm cada uma suas especificidades que não podem ser ignoradas. Seria um grave erro jogar tudo no mesmo saco. A experiência política de cada país é distinta e deve ser reconhecida como tal. O que, por outro lado, não invalida o esforço de constatar algumas convergências e características comuns nos países da América Latina como um todo.