Migração e Direitos humanos
Dificilmente se encontrariam duas realidades tão próximas uma da outra como as migrações, de um lado, e os direitos humanos, do outro. De fato, entre as pessoas atingidas em seus direitos fundamentais, poucas o são tão profundamente como os migrantes. A falta de uma cidadania real e digna constitui o eixo primordial de suas numerosas carências. A partir desse eixo, como raiz e fundamento, outras carências vão surgindo, crescendo e se desenvolvendo. Vejamos mais de perto as laços desse círculo vicioso que, não raro, prende o migrante como uma cadeia de aço.
1). Primeiro, ele se vê abandonado em sua terra natal. Nos países e/ou regiões subdesenvolvidos, em geral não há políticas públicas que assegurem a permanência do homem no campo. A reforma agrária e agrícola, em muitos deles, ainda permanece uma dívida social a ser sanada. Sem um pedaço de chão onde plantar e viver e sem emprego, o camponês vê-se privado das condições necessárias a uma vida com o mínimo de dignidade humana. Trabalho, moradia, educação, saúde, vestuário, alimentação, lazer, promessa de futuro... Tudo lhe é vedado. Engendra-se então o sonho de partir para a zona urbana, para uma região mais desenvolvida ou cruzar as fronteiras do próprio país. Por isso é que, muitas vezes a emigração é precedida pela migração interna. Se ele toma a decisão de emigrar, deixar a terra onde estão enterrados seus antepassados e a pátria que o viu nascer, novos problemas se apresentam.
2). O que fazer com a documentação? O processo costuma ser caro, difícil e demorado. Há os intermediários – gatos, coyotes – que se aproveitam da situação para explorar os migrantes. No fim, não são muitos os que logram êxito na aquisição de todos os documentos requeridos. Daí o grande número de emigrantes e imigrantes clandestinos. O jeito é arriscar tudo, e o risco algumas vezes pode significar a morte na fronteira ou no deserto, como no caso dos que tentam chegar nos Estados Unidos via México. Para não falar do retorno, onde vergonha e fracasso se misturam. Um número expressivo infiltra-se no país de destino e aí passa a viver de forma irregular, os chamados “sem documentos”. Sabemos que, nos últimos anos, em parte devido ao clima de terrorismo mundial, as leis e as autoridades dos países centrais têm sido cada vez mais rígidas e exigentes. Enquanto o capital tem trânsito livre em todo o planeta, muros visíveis e invisíveis são erguidos para conter os trabalhadores.
3). Na condição de imigrantes irregulares, o cerco se fecha. Sem documentos, não há como conseguir um emprego estável, com carteira assinada e remuneração digna. O imigrante acaba sujeitando-se aos serviços mais sujos e pesados, mais perigosos e mal remunerados. Submete-se aos trabalhos recusados pelos trabalhadores locais. Duas portas se lhe fecham imediatamente: de um lado, mesmo em condições de trabalho degradantes, não pode reivindicar direitos trabalhistas; de outro, tende a receber salários irrisórios, o que reduz o acesso aos direitos básicos. A precariedade do trabalho conduz inevitavelmente à precariedade da vida familiar. Além disso, durante vinte e quatro horas por dia, e durante sete dias por semana, pesa sobre ele a ameaça de expatriação. Resulta que o “sem documentos” é, antes de tudo, um não cidadão.
4). Mas os problemas não param por aí. Mesmo conseguido documentar-se e adquirir o status de cidadão regular, permanece sujeito ao preconceito, à discriminação ou à xenofobia. A cor da pele, os traços fisionômicos, os costumes diferentes e os problemas com a língua tendem a dificultar uma inserção natural e saudável. Piadas, comentários e atitudes de desprezo geram, muitas vezes, um clima de hostilidade e fechamento, seja por parte dos imigrantes, seja por parte da comunidade de acolhida. No pior dos casos, o mal-estar pode chegar à perseguição aberta; no melhor, desenvolvem-se às vezes “guetos” em que os “de fora” procuram defender-se dos “de dentro”. Na escola, as crianças filhas de imigrantes, quando conseguem matricular-se (o que nem sempre é fácil), terão problemas com as colegas de sala. Dois exemplos: os negros, filhos de refugiados africanos ou os que carregam traços indígenas. Mais uma vez, a cidadania fica comprometida.
5). Uma última forma de negar a cidadania aos imigrantes é o menosprezo diante de sua cultura ou religião. Não é fácil arrancar a árvore cultural e replantá-la em outro solo. Por um tempo as raízes permanecem expostas ao sol, podem definhar e até morrer. Quando sobrevivem, enfrentam o processo longo e doloroso de adaptação. Durante esse período torna-se crucial o comportamento da comunidade de acolhida. Quando predomina a desconfiança e o medo do “outro, do estranho e do diferente”, o imigrante pode acabar por inibir ou até asfixiar o próprio modo de ser, sua mentalidade, seus valores tradicionais mais profundos. Muitas vezes abandona até seus deuses e santos, bem como as expressões e rituais de sua fé.
É o caso do salmista: “À beira dos rios da Babilônia, nos sentamos e choramos com saudades de Sião; nos salgueiros que ali estavam, penduramos nossas harpas” (Sl 137). Aqui a negação da cidadania atinge seu ponto mais profundo, pois priva o cidadão daquilo que ele tem de mais sagrado. Ao desfazer-se da harpa, símbolo da celebração ritual, perde a alegria, o canto, o sentido da própria vida. Numa palavra, o imigrante habita a fronteira, o não lugar, o qual torna-se o lugar privilegiado para sonhar e construir um novo lugar. Mas isso já faz parte de outra reflexão.