Tempos novos para a América Latina

2006-03-22 00:00:00

Para o lingüista Noam Chomsky, o presidente venezuelano Hugo Chávez representa o verdadeiro golpe ao domínio dos EUA

Continente marcado pelas desigualdades sociais e contínuas agressões dos Estados Unidos, a América Latina começa, de fato, a trilhar caminhos novos rumo à verdadeira integração. È o que defende
o lingüista e intelectual estadunidense Noam Chomsky. Escolhido em votação como o intelectual ativo mais importante na atualidade, numa recente pesquisa realizada pela revista britânica Prospect, Chomsky recebeu cerca do dobro dos votos do segundo colocado, o filósofo italiano Umberto Eco. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, ele fala sobre a situação que está vivendo a América Latina em geral e, em particular, a América do Sul, região sacudida por fortes ventos inovadores e que parece estar se libertando da tradicional influência dos Estados Unidos.

Brasil de Fato – Com a eleição de Evo Morales, na Bolívia, a região parece estar realmente sem controle sob o ponto de vista dos Estados Unidos?
Noam Chomsky – Não há dúvidas de que Washington está muito incomodado com esta situação, já que há algum tempo a região começou sair do controle estadunidense. Tradicionalmente, é uma região que sempre esteve sob o controle dos Estados Unidos, pelo menos desde o final da Segunda Guerra Mundial. A Venezuela foi essencialmente conquistada pelos Estados Unidos nos anos 1920, ou seja, no início da idade do petróleo, quando foram descobertos os enormes recursos deste país. Os Estados Unidos expulsaram os ingleses e, a partir daquele momento, tiveram o controle do país. Com exceção deste e do Canal do Panamá, o controle dos Estados Unidos nunca se estendeu na América do Sul, até o final da Segunda Guerra Mundial. Com o fim da guerra, a Europa foi expulsa da região e o continente entrou sob o domínio de Washington, que de algum modo sempre deu por certo o controle sobre a região, patrocinando golpes militares de Estado. Na última década, o sistema de domínio começou a fragmentar-se, o continente começou a se mover com alguns graus de independência que Washington certamente não quer tolerar. Mas na verdade não há muito o que se possa fazer. As eleições brasileiras foram motivo de forte preocupação, mitigadas de algum modo pelo fato de Lula não ter perseguido políticas realmente de esquerda; pelo contrário, continuou com uma política não muito diversa dos seus predecessores. De qualquer modo, o único golpe verdadeiro
ao domínio estadunidense foi dado por Chávez. A América Latina pela primeira vez na sua história está começando a integrar-se. Os modelos coloniais dos espanhóis, primeiro, e sucessivamente dos ingleses, franceses e assim por diante, criaram um sistema em que os países latino-americanos se orientavam na direção das potências ocidentais que os controlavam,
e não entre si. Agora está tendo início a integração, a América Latina possui recursos realmente enormes e desigualdades muito grandes, opressões e violências, com pouquíssimas interações, mas este sistema começa a inverter-se. É algo difícil, uma união das nações já nasceu, mas até o momento ainda está no papel. Seja como for, ela começa a adquirir forma e contar com o apoio de outras forças externas, em particular a China. O comércio entre a China e a América Latina está crescendo.

BF – Sobretudo com a Venezuela.
Chomsky – A Venezuela está mandando petróleo e a China está começando a investir no país.
A Venezuela sempre foi uma das maiores fontes de energia dos EUA desde 1970. A partir de então, as coisas mudaram, mas a Venezuela sempre foi o maior fornecedor dos estadunidenses e possui os maiores recursos na região. A Bolívia conta com enormes fontes de gás natural que até agora não foram exploradas pelos EUA, que de qualquer modo contam com isso dentro do mais breve. E nos outros países da América Latina existem também grandes quantidades de recursos naturais. Os acordos com a China estão decolando lentamente, assim como as relações comerciais com a Europa, além disso, estão nascendo também as relações Sul-Sul.

BF – É esta a grande novidade?
Chomsky – Certamente. O Brasil, a África do Sul e a Índia, entre outros, estão formando uma aliança independente do Sul. E tudo isso está fugindo do controle de Washington. Os Estados Unidos deram por certo, desde o final da Segunda Guerra Mundial, um controle quase total sobre o planeta, com exceção de alguns setores do Leste da Europa, mas o restante era dado como certo. Mas a ameaça da Venezuela aos Estados Unidos é ainda maior e diz respeito às relações entre Cuba e Venezuela. Há décadas que os Estados Unidos tentam destruir Cuba. Esses dois países estão estreitando as relações, o que escandaliza Washington e a imprensa. Mas se analisarmos estas relações, observaremos que são muito bem estudadas, ambos usam os pontos fortes. A Venezuela manda o petróleo e Cuba envia pessoal altamente qualificado, alta tecnologia médica, professores, doutores, etc. É uma relação muito natural que está se difundindo em toda a região. Tudo isso aterroriza os EUA.

BF – Parece a primeira vez que alguém utiliza o petróleo como um meio de integração, ao invés de algo para criar confl itos e guerras.
Chomsky – Em geral, o petróleo foi usado apenas por dois motivos: para seguir a direção do Ocidente, dos países ricos; e para enriquecer os administradores locais. Este é o modelo no Oriente Médio e na Venezuela. E é por isso que a Venezuela, um país potencialmente muito rico,
sempre teve um setor de ricos muito pequeno e de origens ocidentais que vivem muito bem, e uma enorme massa de pessoas extremamente pobres. Este é o modelo do petróleo, enriquece as elites locais e escorre através das multinacionais em direção ao Ocidente, onde contribui para o
desenvolvimento industrial. Foram feitos esforços para que houvesse uma mudança. Nasser no
Egito (Gamal Abdel Nasser), por exemplo, foi temido e comparado a um novo Hitler, principalmente porque o seu nacionalismo estava orientado ao uso dos recursos da região, não para enriquecer o Ocidente e as pequenas elites locais. Esta é a razão pela qual teve que ser destruído. Foi isso que marcou o nascimento da aliança entre os EUA e Israel.

BF – Isso também acontece em relação à Venezuela?
Chomsky – Pela primeira vez na história, o país usa seus recursos energéticos para o desenvolvimento. Podemos discutir se vai ter sucesso ou não, mas os recursos são utilizados em reconstrução, saúde, etc. Existe também um certo nível de participação no controle da indústria petrolífera por parte dos trabalhadores. Mais uma vez, podemos discutir sobre o sucesso ou não dessas políticas, mas o final do programa é muito claro e isto transtorna Washington. A idéia que os recursos de um país devam ser utilizados para a população do próprio país mete mesmo muito medo.

BF – É possível que a popularidade de Hugo Chávez na América Latina e suas políticas de integração através de acordos com o petróleo possam de alguma maneira ajudar os outros presidentes de centro-esquerda da região a manter uma política mais à esquerda e mais popular?
Chomsky – É difícil fazer previsões, mas certamente Chávez está exercendo uma pressão nesse
sentido. Podemos estar certos de que os EUA tentarão detê-lo a todo custo. Se dermos uma olhada nas despesas estadunidenses na América Latina, nos damos conta de que estamos diante de uma mudança. Durante o ápice da Guerra Fria, a ajuda econômica era consideravelmente superior àquela militar, hoje é mais ou menos a mesma, a ajuda militar cresceu e termina principalmente na Colômbia e nos países que apoiam tais esforços. Portanto, as ajudas militares aumentaram muito. Além disso, a presença militar de estadunidenses também alcançou um pico. Mesmo o treinamento dos militares latinoamericanos sofreu uma mudança. Era feito pelo Departamento de Estado e teoricamente havia a supervisão do Congresso, que ditava condições baseadas nos direitos humanos. Essas medidas não eram aplicadas de maneira perfeita, mas sim de maneira muito sumária, mesmo assim surtiam efeito. Hoje houve uma mudança, a preparação dos militares latino-americanos agora é de responsabilidade do Pentágono, não existem restrições ou supervisões. Se querem ensinar métodos de tortura, não há problemas, ninguém virá jamais a saber. A passagem da responsabilidade ao Pentágono significa que a condicional sobre os direitos humanos desaparece, e eles são livres e felizes de fazer o que quiserem. O Pentágono está reexaminando as finalidades desses treinamentos.

BF – É assim que os EUA pretendem fazer a guerra contra o “terror”?
Chomsky – Há algum tempo, falava-se de defesa do hemisfério, pois Kennedy modificou os objetivos passando da defesa do hemisfério à segurança interna. Isso significa praticamente combater contra suas próprias populações, terrorismo de Estado e assim por diante. Hoje a finalidade mudou novamente, fala-se de guerra contra o tráfi co de drogas, mas na realidade na mira estão os temas sociais: grupos radicais, formações sociais, ativistas, sindicalistas. Tudo isso é muito explícito e sob o controle do Pentágono, sem alguma supervisão. Estas são as mudanças concretas e estão correlacionadas ao aumento da grande preocupação dos EUA com os movimentos de independência e de integração da região. E a Colômbia joga um papel muito importante para os Estados Unidos.

BF – Podemos dizer que a Colômbia, a exemplo de Israel, pode ser um fator de instabilidade regional que tem a tarefa de manter a área e os países
confinantes sob pressão?
Chomsky – Acho que os Estados Unidos gostariam de fazer algo do gênero, mas simplesmente
não podem. Só o controle da Colômbia é um problema sufi cientemente grande. Os Estados Unidos ainda não conseguiram tomar o controle da Colômbia. A guerra contra a droga é somente uma branda cobertura de uma luta contra a guerrilha. Aquilo que é chamado treinamento antinarcótico é na verdade um treinamento antiguerrilha. O Plano Colômbia sempre foi um programa antiguerrilha. Grandes áreas do território colombiano estão fora do controle do Estado e nas mãos da guerrilha camponesa. Para compreender como as intervenções dos EUA pouco têm a ver com a luta contra a droga, basta observar como grande parte da produção de droga seja feita em áreas sob controle paramilitar. As operações do Plano Colômbia, por outro lado, são feitas contra os camponeses pobres do sul do país, nas regiões de Putumaio e do Cauca, entre outras. A Colômbia é um dos países com o maior número de deslocados, atrás somente do Afeganistão e do Sudão. Cerca de dois milhões de pessoas são forçadas a viver nos subúrbios urbanos mais degradados. Afastada a população, chegam as companhias petrolíferas e de mineração que começam a explorar as montanhas e o subsolo, ou então chega a Monsanto e outras companhias da agroindústria que praticam a agricultura intensiva para exportação,
provavelmente geneticamente modificadas. Um típico modelo colonial, onde os ricos tornamse
mais ricos e as companhias estrangeiras acumulam enormes capitais. Os camponeses, se sobrevivem, devem ir embora.

BF – Muitas vezes o senhor afirmou que a região Andina será o próximo interesse da administração Bush, depois do Iraque.
Chomsky – Antes da invasão do Iraque, eu achava que ela não duraria mais que três dias. Uma das razões da invasão era que o país estava completamente sem defesas, depois de pesados bombardeios e um embargo fortíssimo, o país se mantinha unido de modo muito precário. Mas de algum modo transformou-se em uma incrível catástrofe, uma das piores catástrofes militares da história. Os soldados estadunidenses estão imobilizados, não podem ir embora
sem estabelecer um Estado-satélite no modelo centro-americano ou dos satélites do Leste Europeu, com uma democracia formal que faça com que as coisas funcionem no modo justo. Eles não podem ir embora deixando o petróleo do Oriente Médio nas mãos de uma série de governos xiitas que controlam o Irã, o Iraque e a Arábia Saudita. Eles estão em grandes dificuldades. Sim, eu achava que o próximo passo seria a região Andina, mas no momento isso é
impossível, estão imobilizados. Por isso, acho que é uma oportunidade de crescimento para a integração da região Andiana.
(Tradução Nicia Nogara)