DEPOIS DA ASSEMBLÉIA POPULAR

2005-11-25 00:00:00

Três palavras acompanharam de perto todo o processo da Quarta Semana Social Brasileira (4ªSSB), como também sua convergência final com a Campanha Jubileu Sul: mutirão, articulação e mudança. Enquanto a primeira dá conta de juntar as forças sociais num empenho de metas e prioridades comuns, a segunda procura articulá-las numa rede de ação mais ampliada e plural. Uma soma as energias locais dos principais atores sociais em jogo, a outra multiplica os esforços com vistas a uma incidência global. Por sua vez, ambas convergem para a necessidade de mudanças profundas e substanciais, tão necessárias hoje no Brasil e no mundo.
As três palavras marcaram o clima da Assembléia Popular, realizada no final de outubro de 2005, tentando, por um lado, superar a apatia e a perplexidade das forças sociais e, por outro, criar uma atmosfera de entusiasmo e renovação. Mas elas fizeram mais do que isso. Conjuntamente, representam uma espécie de balizas que delimitam e definem o caminho e o horizonte das ações populares para o período de 2006.
Nesta perspectiva, podemos dizer que elas não são apenas palavras, mas conceitos que acendem novas luzes em nossa trajetória econômica, política, social e cultural. O conceito de mutirão, por exemplo, expressa uma ação conjunta com vistas à realização de uma tarefa superior às energias de cada ator social envolvido. Dado o tamanho do desafio, torna-se necessário somar todas as forças disponíveis. Evidente que o rol de transformações a serem implementadas com certa urgência no país e no mundo, especialmente no que diz respeito às dívidas sociais e às políticas públicas, ultrapassa qualquer esforço individual. A palavra de ordem é somar forças.
Já o conceito de articulação, cada vez mais presente no vocabulário dos setores de esquerda, aponta para a necessidade de novas conexões, em âmbito nacional, regional e internacional. Determinados movimentos sociais, com destaque para as organizações ambientalistas, feministas e a Campanha Jubileu Sul, por exemplo, mostram a crescente importância de ações em redes cada vez mais abrangentes. De fato, à medida que a economia se globaliza e que o capital transita livremente por todo o planeta, os esforços em vista de uma nova ordem mundial não podem ficar limitados à geografia de uma nação. Também não podem restringir sua ação a limites de natureza religiosa, étnica ou cultural. A ordem é vencer toda espécie de obstáculo, romper barreiras, ultrapassar todas as fronteiras. Articular é sinônimo de estabelecer parcerias com forças distintas, sim, mas convergentes. Mais uma vez, dada a magnitude da tarefa, não podemos nos dar ao luxo de desprezar nenhuma força que se disponha a fazer parte da imensa rede de articulação.
O conceito de mudança, por seu turno, reúne duas ordens de pensamento. Por um lado, em nível nacional, põe em pauta a política econômica dos últimos governos brasileiros. Orquestrada para beneficiar os donos do poder, da riqueza e da renda, especialmente o setor financeiro e o agro-negócio, ela reclama mudanças urgentes e necessárias, se quiser ser fiel a um programa de políticas públicas que se direcione à elevação do nível de vida da população brasileira. Isto significa rever a política atual marcada pelos juros altos, por uma pesada carga tributária e pelo superávit primário. Às vésperas de um ano eleitoral, essas questões devem entrar na pauta e no programa dos candidatos seriamente comprometidos com o destino da nação. E por falar em eleições, outras palavras que percorreram os corredores da Assembléia Popular foram autonomia e transparência: autonomia dos movimentos, entidades e organizações não governamentais em relação aos partidos políticos e transparência por parte destes quanto aos gastos de campanha.
Por outro lado, em nível mundial, falar de mudança é repensar e reorientar a própria trajetória da chamada civilização ocidental, baseada num ritmo de produção e consumo insustentável e crescentemente predatório. Os indicadores econômicos, o lucro a qualquer preço e o equilíbrio do binômio custo/benefício não bastam para medir o grau de uma civilização. A esses termômetros, é preciso acrescentar os freqüentes dados e alertas relacionados ao meio ambiente, à qualidade de vida da maioria da população, ao uso adequado dos recursos naturais e à distribuição justa dos frutos do progresso tecnológico. Aqui a tarefa é ainda mais desafiadora, seja em termos das lutas e organizações locais, seja quanto à exigência de globalizar a solidariedade. Embora 2006 seja ano de Copa do Mundo, quando muitos gols e muita fumaça costumam desviar nossas atenções, é preciso manter o foco das articulações globais em torno de questões centrais, tais como a dívida externa, o risco da Alca e a militarização dos Estados Unidos; a miséria e a injustiça crescentes, particularmente no Terceiro Mundo; o desemprego, subemprego, trabalho escravo e degradante; as migrações e o tráfico internacional de drogas, armas e seres humanos; o terrorismo religioso ou de estado; e a necessidade de uma nova convivência com o planeta terra e sua biodiversidade. Para evitar a miopia e a cegueira, serve o alerta da ONU divulgado nestes dias, segundo o qual 6 milhões de crianças morrem anualmente de desnutrição e fome.
Enfim, as três palavras-conceitos – mutirão, articulação e mudança – abrem perspectivas para as forças sociais em 2006. Além disso, ajudam a superar uma série de vícios comuns em nossas ações sociais e pastorais, tais como a fragmentação e/ou repetição de atividades; o corporativismo ineficaz e às vezes morbidamente doentio; a concentração e sobrecarga de não poucos agentes e lideranças; o paralelismo e isolamento em muitas tarefas afins; a desconsideração quanto às questões de gênero, de raça, de etnia, bem como a relação com o meio ambiente e as diversas formas de vida, entre tantos outros.
Mais do que nunca estamos cientes da magnitude e da profundidade das mudanças a serem levadas adiante. Não basta eleger um presidente, um governador ou um prefeito; tampouco basta eleger representantes das causas populares, sejam senadores, deputados ou vereadores. Tudo isso é necessário, mas não suficiente. É preciso avançar para uma democracia direta. É preciso criar novas canais, instrumentos e mecanismos de participação popular. Torna-se cada vez mais evidente que nada disso se faz sozinho ou isolado.