O sacrifício do social
“Resultado do abismo entre a retórica das boas intenções e o comprometimento real com as metas sociais, o Brasil ocupa hoje o 94º lugar em um ranking elaborado pela ONG Internacional Social Watch, que avalia o desempenho de 163 países na área social e combate às desigualdades” (Cfr. Folha de São Paulo, 31/10/05, pág A 8).
Esse comentário é baseado em dados que comprovam a opção política dos últimos dois governos, FHC e Lula. No modelo econômico adotado fica evidente a subordinação da soberania nacional ao capital financeiro internacional. De acordo com a matéria, entre 1995 e 2004, por exemplo, os gastos da União com juros e encargos da dívida pública alcançaram a cifra de US$ 267,89 bilhões. Essa quantia é 10 vezes o total de gastos com assistência social, 3 vezes o total de gastos com educação, 27,5 vezes o total de gastos com segurança pública e 4,5 vezes o total de gastos com investimentos. Por outro lado, no mesmo período, “a renda média do trabalhador assalariado caiu 21% e a taxa de desemprego média mensal aumentou 31%”.
Esses números mostram que no decorrer da última década as dívidas sociais cresceram na proporção direta ao crescimento da dívida pública. A qualidade de vida da população brasileira é sacrificada no altar do mercado financeiro. O governo converte-se em uma espécie de correia de transmissão, pela qual os impostos dos contribuintes são carreados para as contas bancárias dos grandes especuladores nacionais e internacionais. O superávit primário é o instrumento legal (não legítimo) que permite semelhante transferência de renda dos países periféricos para os países centrais. Temos aí uma nova forma de acumulação de renda e riqueza, em que o endividamento público desempenha um papel preponderante no complicado xadrez das relações internacionais. O resultado é o aperto cada vez maior no orçamento público e o aprofundamento do fosso social que separa ricos e pobres, seja em âmbito global, seja no interior de cada nação. Em resumo, uma ordem mundial simultaneamente concentradora e excludente.
Segundo o mesmo artigo, “a conclusão principal é que pouco se avançou nos últimos dez anos, desde a promessa que o então presidente Fernando Henrique Cardoso fez, em 1995, numa conferência social da ONU, de ‘fazer face, de forma sistemática, aos problemas sociais do país’. No governo Luiz Inácio Lula da Silva o panorama não mudou”. As expectativas de um governo voltado para o social, desencadeadas pela eleição do operário-presidente, foram rapidamente frustradas. Como uma lata rolando no asfalto, o discurso governamental da mudança, nos dias atuais, não passa de uma retórica tanto mais barulhenta quanto mais vazia e inócua.
Evidencia-se, uma vez mais, a continuidade da política econômica de um governo para o outro. Por mais que a retórica do Planalto insista no discurso da mudança, os dados revelam que no atacado as coisas seguem o rumo traçado pela opção política neoliberal. Nem mesmo no varejo se verificam mudanças substanciais. Tanto FHC como Lula preferiram implementar políticas compensatórias, em detrimento de profundas políticas públicas. A morosidade na criação de novos postos de trabalho e da realização da reforma agrária e agrícola, por um lado, e a precariedade dos serviços de saúde, educação, transporte coletivo e malha rodoviária, por outro, atestam essa opção política. Aos mega-investidores do cassino internacional, os bilhões em dólares; à população de baixa renda, os centavos de real distribuídos pelos famigerados programas assistenciais. A uns, o jogo da bolsa de valores; a outros, a penúria do bolsa-família.
De tudo isso resulta que, quando se trata do ajuste fiscal, “o governo cumpre meta do ano com três meses de antecedência”, como se pode ler numa das manchetes on-line da UOL, dia 31 de outubro de 2005. Enquanto isso, as metas relacionadas às dívidas sociais ficam em segundo plano, quem sabe à espera de novas promessas demagógicas no processo eleitoral de 2006!
A manutenção dessa rota contém, entre outras, duas exigências perversas: tanto a taxa de juros quanto a carga tributária estão muito acima da média mundial. A contrapartida social é evidente a olho nu: desemprego, subemprego, precarização das relações de trabalho; miséria, fome, violência e deslocamentos em massa; no limite, a insegurança e o medo vão tomando o lugar da esperança.
Mas, se a decepção pode engendrar perplexidade e indignação, será capaz também de abrir novas formas de ação social e política. Toda crise costuma ser fecunda e fértil. É o que ficou demonstrado no decurso de todo processo da 4ª Semana Social Brasileira e, especialmente, na Assembléia Popular - Mutirão por um novo Brasil, realizada em Brasília-DF, de 25 a 28 de outubro de 2005. A pesar do deserto e das turbulências políticas do momento atual, milhares de iniciativas populares multiplicam-se por todo o país e, qual luzes no céu escuro, vão se convertendo em novas estrelas. A esperança ressurge das cinzas e confere novo vigor aos movimentos sociais e organizações populares em geral. Sobre os escombros dessa política econômica e a partir de novos caminhos alternativos, é possível pensar coletivamente o Brasil que a gente quer.