Lances dos EUA na América Latina

2005-08-30 00:00:00

Como bem observou Ronaldo Carmona em seus dois últimos artigos no Portal Vermelho [1], a América Latina vive uma situação bastante contraditória. Do lado positivo, aumentam os sintomas de resistência dos povos à ofensiva imperialista dos EUA. Isto ficou patente na recente derrota da proposta do governo Bush, apresentada na Organização dos Estados Americanos, da criação de um órgão de “monitoramento da democracia” na região; nos avanços das negociações para a criação da Comunidade Sul-Americana; e nas iniciativas de poderosas estatais, como o BNDES e a PDVSA, para reforçar a integração hemisférica. Já do lado negativo, os EUA intensificam as manobras para impor a Alca e a militarização da continente.

Para reforçar o argumento de que as forças progressistas da região não devem se desarmar ou se dividir no enfrentamento à besta-fera imperialista, apresento abaixo os novos lances dos EUA para ampliar a sua hegemonia na região. O “império do mal” não dá tréguas; ele investe de todas as formas para manter e expandir o seu “quintal”. Numa didática síntese formulada pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, no livro “Quinhentos anos de periferia” [2], o atual secretário-geral do Ministério de Relações Exteriores do Brasil elencou as quatro principais estratégias de dominação dos EUA na região: econômica, política, ideológica e militar. Nas últimas semanas, o governo Bush acionou suas peças nestes quatro quesitos:

1- Estratégia econômico-comercial. No final de julho, a Câmara dos Deputados dos EUA aprovou, por dois votos de diferença (217 a 215), o tratado de livre-comércio com os cinco países da América Central (Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras e Nicarágua) e a República Dominicana (DR-Cafta, na sigla em inglês). O presidente Bush se empenhou pessoalmente, telefonando e visitando parlamentares, por considerar que este acordo “faz avançar os interesses econômicos e a segurança dos EUA”. Imposto a nações muito frágeis econômica e politicamente, ele é bem mais desvantajoso do que o previsto na Alca.

Na seção 102, por exemplo, ele fixa que “a normativa estadunidense prevalece sobre qualquer preceito do Cafta; nada do acordo poderá modificar a legislação federal; nenhuma pessoa privada poderá demandar do governo dos EUA”. Já para os demais países signatários prevalecerão as normas jurídicas do Cafta, num violento e assimétrico atentado à soberania destas nações, tornadas meras colônias ianques. Estudos indicam que o tratado aumentará as exportações agrárias dos EUA em cerca de US$ 1,5 bilhão ao ano e a dos produtos industrializados em US$ 1 bilhão. Indústrias e propriedades rurais dos seis países da região deverão ir à falência e crescerá o êxodo clandestino de desempregados centro-americanos para os EUA.

Mas, como revela Eduardo Tamayo, a principal vitória do governo dos EUA não foi a comercial, mas sim a política. “As exportações anuais dos seis países envolvidos neste tratado não representam nem um mês das exportações da China para os EUA. Para o governo George W. Bush a aprovação do DR-Cafta tem uma conotação bem mais política e, inclusive, ideológica: significa avançar na imposição dogmática da ‘agenda do livre mercado’” [3]. Na prática, ele faz parte da estratégia dos EUA de “comer pelas bordas” e minar a resistência dos países da América Latina diante da Alca. Em julho de 2003, já havia sido firmado o tratado com o Chile e agora se ultimam as negociatas do “acordo” andino (Colômbia, Peru e Equador).

2- Estratégia política-diplomática. Neste terreno, as ações conspirativas dos EUA são das mais intensas, envolvendo embaixadores e sua vasta lista de agentes da CIA e de outros órgãos de inteligência. Seu alvo principal continua sendo a Venezuela, com várias articulações no sentido de isolar e derrotar a revolução bolivariana. A mais recente acusa Chávez de exportar armas para a guerrilha na Colômbia e é alardeada pela prepotente secretária de Defesa, Condoleezza Rice. Já o secretário do Tesouro dos EUA, John Snow, visitou o Brasil no início de agosto para manifestar seu “irrestrito” apoio ao ministro Antonio Palocci, visando evitar que a atual crise política afete “seus sólidos fundamentos da orientação macroeconômica”.

Mas o lance mais visível desta ofensiva se deu com a eleição de um fiel aliado de Bush para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Num processo viciado e antidemocrático, no qual os EUA possuem 30% das ações do banco e, por isso, detêm mais votos, foi eleito o “colombiano” Luis Alberto Moreno, que na verdade nasceu na Filadélfia, formou-se em economia nos EUA e apenas adotou cidadania na Colômbia. O novo dirigente do BID foi um dos artífices do Plano Colômbia – um projeto de intervenção militar no país bancado pelos EUA – e é o principal negociador do tratado de livre-comércio entre as duas nações. Também é conhecido pelos escândalos de corrupção em instituições financeiras e pela grilagem de terras públicas. Ele já deixou explícito que seu maior objetivo será “ressuscitar a Alca”.

3- Estratégia militar. As investidas neste campo também são arrojadas. Após estabelecer um “cerco” à região amazônica, através da instalação de bases militares na Colômbia, Aruba e Equador e de radares no Peru, o governo Bush finca agora sua cunha no Cone Sul ao montar uma base militar no vizinho Paraguai. Aprovado pelo Senado, em novembro passado, o acordo foi incorporado ao ordenamento jurídico do país através da lei nº 2.546 e prevê exercícios militares conjuntos durante 2005. Já a mensagem 282, enviada pelo governo Nicanor Duarte em 7 de julho, solicita “o ingresso no país de tropas dos EUA, com armas, equipamentos e munições, a fim de realizar exercícios e intercâmbios bilaterais” até dezembro de 2006.

O desembarque dos primeiros 400 soldados ocorreu em meados de julho e há informações de que poderão ser enviados até 16 mil marines. O acordo outorgou imunidade total e status diplomático aos militares – que não poderão ser julgados, nem por crimes comuns, no país “ocupado”. Os EUA, que já possuíam um aeroporto capaz de aterrissar o gigante B-52 em Mariscal Estigarribia, na fronteira com a Bolívia, agora passam a ter uma base de operações na Tríplice Fronteira, na divisa com o Brasil e a Argentina. A região, rica em água doce (Aqüífero Guarani), é estratégica para o controle do Cone Sul. “Esse acordo permite a instalação de uma base militar no ‘olho do furacão’ – se não permanente, pelo menos temporária –, além de conceder tempo suficiente para mapear toda a tríplice fronteira”, alerta o deputado Dr. Rosinha [4].

4- Estratégia ideológica. O império também não vacila diante da batalha de idéias. Ele não ficou passivo frente à iniciativa do governo venezuelano, com apoio de Cuba, Argentina e Uruguai, de lançar a Telesur, a nova rede de televisão sul-americana inaugurada em 24 de julho. Visando neutralizar sua programação, o Congresso dos EUA aprovou emenda do deputado republicano Connie Mack que autoriza a transmissão de “imagens e sons especiais” para interferir no sinal emitido pela Telesur. O reacionário parlamentar da Flórida justificou o projeto acusando a “Venezuela de marchar rumo ao comunismo e à perda da imprensa livre”. Como afirma Jeferson Miola, coordenador-executivo do 5º Fórum Social Mundial, essa iniciativa fere a autonomia das nações latino-americanas e é um atentado à livre informação. “É, efetivamente, a prática do terrorismo virtual, do terrorismo de ciberespaço que tem sentido estratégico e semiótico” [5].

Como se nota, enquanto a venal mídia brasileira transforma a grave crise política nacional em noticiário policial, o “império do mal” dá seus lances para manter e expandir a sua hegemonia econômica, política, militar e ideológica na América Latina. O jogo é muito mais pesado do que alguns “éticos” imaginam!

NOTAS

1- Ronaldo Carmona. “Crise política e a tendência progressista na América Latina”. Vermelho, 29/7/05. “A Alca comendo pelas beiradas”. Vermelho, 05/08/05.

2- Samuel Pinheiro Guimarães. “Quinhentos anos de periferia”. Editora Contraponto, RJ, 1999.

3- Eduardo Tamauyo. “Un boomerang para EE.UU”. Agência Latino-Americana de Informação, 29/7/05.

4- Dr. Rosinha. “Quando o inimigo dorme ao lado”. Agência Carta Maior, 26/07/2005.

5- Jeferson Miola. “Terrorismo semiótico”. Agência Carta Maior, 29/07/05.

Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “Encruzilhadas do sindicalismo” (Editora Anita Garibaldi, junho de 2005).