Da nossa festa à nossa luta
Articulada na tradição de Porto Alegre, Semana de Ação Global contra mercantilização da vida espalha-se por 70 países, desafia Organização Mundial do Comércio e sugere como podem ser diversas e efetivas as mobilizações sociais da era FSM
“Os Fóruns Sociais já são
a nossa música.
Agora, precisam ser também
a nossa luta”
Arundhati Roy, Mumbai, janeiro de 2004
Como impedir que a conferência ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), confirmada para dezembro, em Hong Kong, comece a amarrar um novo pacote de privatizações, ataque aos produtores nacionais, privilégios para as grandes corporações e controle sobre o conhecimento? Quais os meios para estimular as sociedades a se informar sobre a OMC e evitar que suas decisões continuem protegidas pelo silêncio cúmplice das mídias? Poderia o Fórum Social Mundial (FSM), marcado pela diversidade e pela ausência de direções ou declarações finais, contribuir com estes objetivos – tão indispensáveis à construção de um mundo novo?
Começou a se desenhar no último domingo (10/4), e prossegue até sábado (16), uma primeira resposta a estas questões. Trata-se da Semana de Ação Global sobre comércio. Tem a cara de Porto Alegre. Vem sendo preparada há 16 meses, por mais de 400 organizações (não há participação direta de partidos políticos), de 70 países. Está se desdobrando em milhares de iniciativas, em todos os continentes. Articula-se por meio da internet (www.april2005.org) e chegou a desenvolver conceitos novos (o “livre comércio forçado” é um deles). Mas dispensa manifesto.
A Semana é plural também nos sujeitos sociais envolvidos (de sindicatos operários e organizações camponesas a empreendedores comprometidos com a justiça social e bancos éticos). As ações são sempre pacíficas. Procura-se traduzir comércio mundial em temas do quotidiano das sociedades. Na segunda-feira (11/4), em Zâmbia, debateu-se o direito à Água, em bairros onde as crianças caminham uma hora, e enfrentam fila de duas, para voltar com um balde de vinte litros na cabeça. Pressiona-se o poder e se cultiva a criatividade. Uma manifestação de agricultores do Senegal terminou diante do Parlamento, onde cada deputado recebeu uma galinha viva, em referência à importação de frangos, que está dizimando os criadores locais. Na Irlanda, os parlamentares foram convidados a participar de um almoço-loteria. Cada um comerá, de acordo com sua sorte, a refeição típica de um país ou grupo social – de refinadas iguarias a uma colherinha fria de arroz ...
Um discurso que vai além dos convertidos
A Semana de Ação Global é filha de uma inquietude. A idéia de fazê-la surgiu novembro de 2003, nos preparativos para o IV FSM. Ativistas de cerca de cem organizações que se destacam na luta contra a globalização neoliberal reuniram-se em Delhi (Índia) para uma Conferência Internacional das Campanhas sobre Comércio. Constatou-se que o ano de 2005 concentra novos riscos de ataque aos direitos sociais e de mercantilização da vida. Além da própria reunião ministerial da OMC, há o encontro de cúpula da ALCA (novembro, na Argentina), a reunião do G8 (julho, no Reino Unido), as assembléias do FMI e Banco Mundial (abril e setembro). Evitou-se, porém, a resposta fácil e convencional: apenas atos de protesto, durante estas reuniões.
Construiu-se cuidadosamente uma alternativa de mobilização baseada em três idéias fortes. A data não deveria coincidir com nenhum encontro das instituições globalitárias. “Queremos escolher o momento de agir juntos. Não nos limitamos nem reagimos a um tempo imposto por outros. Exigimos o direito de definir nossa própria agenda”, explicaria em janeiro deste ano, num seminário organizado durante o V FSM, Martin Gordon, coordenador de campanhas da Christian Aid, uma entidades ativamente envolvidas na Semana.
Era preciso, além disso, ir aonde as sociedades estão: envolver as maiorias, fugir da tentação de falar apenas aos convertidos. A saída encontrada foi abrir espaço para o relato de casos pessoais. Gordon contiua: “A Semana de Ação Global pretende ser um período de narrativas. Debates econômicos e estatísticas podem sugerir que o livre comércio não ajuda. Mas é preciso mostrar aos intelectuais, à mídia e aos políticos que comércio não tem a ver principalmente com Economia – mas com Alimentos, Água e Saúde. Precisamos abrir espaço para que as pessoas atingidas pelo 'livre' comércio contem suas histórias”.
O terceiro desafio era construir alternativas. Um dos documentos disponíveis no sítio internet da Semana de Ação Global pergunta, provocativamente: “As pessoas sabem o que rejeitamos. Mas têm consciência do que queremos?”
Seduzir, ao invés de “convocar”
Milhares de organizações, em todas as partes do planeta, dedicam-se a mobilizar suas sociedades em do comércio internacional. Como envolvê-las em uma ação internacional? Ainda em Delhi, constatou-se que era preciso convencer e seduzir, ao invés de convocar burocraticamente. A memória da conferência de novembro de 2003, frisa, aliás: “nenhum documento final foi emitido ao fim dos trabalhos. O encontro não tem qualquer status oficial ou poder sobre as organizações presentes, e nenhuma de suas decisões compromete os participantes”.
Nem seria preciso. A Semana tornou-se um sucesso graças ao desenho político peculiar construído para ela a partir da conferência. Sua radicalidade sugere que a luta vale a pena, pois há algo grande em jogo: além da distribuição de riquezas, o próprio direito de as sociedades se autogovernarem, ao invés de serem tangidas pelos mercados
O “livre” comércio é uma fraude, sustenta um dos documentos de mobilização disponíveis na internet. O texto argumenta: as políticas de liberalização econômica não têm sido adotadas voluntariamente pelos eleitores ou governantes. Elas são impostas na prática, por organizações como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, que as apresentam como condições para obter empréstimos ou escapar de crises financeiras. Elas afastam as populações de direitos como o trabalho, a terra, a água, o ambiente saudável. Como saída, sugere o mesmo material, é preciso retomar a proposta do comércio justo.
Anti-capitalistas, sim. Sectários, nunca
Como propor alternativas claramente opostas às do capitalismo sem ficar restrito aos pequenos grupos? A lógica da Semana foi, também neste aspecto, a mesma de Porto Alegre: ela não elege sujeitos sociais ou formas de luta prioritárias. Cada organização pôde somar-se à iniciativa mantendo sua identidade e autonomia. Como era natural, optou-se pelos Fóruns Sociais, como espaço para tornar a idéia conhecida. Oficinas e seminários sobre a Semana foram realizados sucessivamente no IV FSM (Mumbai, janeiro de 2004), nos Fóruns Sociais das Américas (Quito, julho de 2004) e da Europa (Londres, novembro de 2004) e no V FSM (Porto Alegre, janeiro de 2005). A cada novo fórum, a proposta inicial recebia adesões e incorporava idéias.
A partir de abril 2004, a internet ajudou a reforçar esta mobilização alimentada pelo respeito à diversidade e pela horizontalidade. Entrou no ar o sítio internet da campanha, cuja característica é a interatividade. Além de oferecer ampla informação política, ele permitiu, por exemplo, que qualquer organização subscrevesse um “Chamado à ação”; registrasse, autonomamente, as iniciativas que pretendia promover, durante a Semana; dialogasse com os “contatos nacionais” da campanha; ou se tornasse, ela própria, um destes contatos.
O resultado foi uma explosão de criatividade e iniciativas. Há milhares de atividades registradas. A maior parte, como seria de prever, concentra-se em países do Sul. Nesta quinta-feira (13/4), por exemplo, haverá ações em 28 países. Alguns exemplos: na Colômbia, uma Marcha Nacional, contra a eventual adesão do país ao tratado de “livre” comércio do Bloco Andino com os EUA; em Gana, uma marcha ciclística pelo comércio justo, entre a cidade de Tema e a capital, Acra; no Paquistão, uma manifestação de pequenos agricultores; na Bolívia, concertos musicais no bairro proletário de Al Alto, La Paz.
Entre os países do Norte, destaca-se a Itália. A Semana foi lançada antecipadamente dia 8, em Florença, como parte de Terra Futura -- um fórum de debates sobre o futuro do planeta assumidamente inspirado no FSM. A partir do dia 10, espalhou-se por mais de 40 cidades, onde haverá de denúncias contra a privatização da água a diálogos com dirigentes do MST; de apresentações musicais a discussões sobre “um novo modelo de comércio e de empresa”. A programação em todos os países, assim como relatos de algumas das iniciativas, está disponível na internet.
Um precedente precioso para Porto Alegre
Os organizadores da Semana calculam que reunirão 10 milhões de pessoas, ao longo dos sete dias. Imaginam, por isso, que farão “uma das maiores mobilizações sociais da História”. Por ser menos concentrada no tempo, e não prever apenas grandes marchas e atos, é certo que ela não terá o mesmo impacto do gigantesco Dia Mundial contra a Guerra, que atraiu 15 milhões de pessoas em fevereiro de 2003 e cuja convocação também foi difundida a partir do FSM.
Mas um precedente precioso está surgindo – ainda que de modo muito embrionário – diante de nossos olhos. Não se trata mais apenas de oposição aos planos do capital e do império. A Semana sugere que é possível construir, com base na diversidade, mobilizações mundiais em favor de uma agenda de transformações. Sim, “comércio justo” ainda é um conceito geral, pouco específico. Mas que impedirá o planeta Porto Alegre de suscitar, no futuro – e sempre com base na auto-organização – campanhas internacionais em favor, por exemplo, da abolição da dívida dos países do Sul; da redução da jornada de trabalho para 30 horas, em todo o mundo; ou de uma renda cidadã universal que permita a cada habitante do planeta apropriar-se de uma parcela da riqueza socialmente construída?