Refletindo sobre a noção de exclusão

2003-06-25 00:00:00

Tema
presente na mídia, no discurso político e nos planos e
programas governamentais, a noção de exclusão
social tornou-se familiar no cotidiano das mais diferentes
sociedades. Não é apenas um fenômeno que atinge
os países pobres. Ao contrário, ela sinaliza o destino
excludente de parcelas majoritárias da população
mundial, seja pelas restrições impostas pelas
transformações do mundo do trabalho seja por situações
decorrentes de modelos e estruturas econômicas que geram
desigualdades absurdas de qualidade de vida.
Este
artigo tem como objetivo apresentar as principais idéias sobre
a noção de exclusão social presentes na
literatura francesa dos anos 90, contrapondo-as e/ou complementado-as
com reflexões extraídas da literatura brasileira,
mostrando que embora tão difundido este é um tema
relativamente recente e polêmico.
Mendigos,
pedintes, vagabundos, marginais povoaram historicamente os espaços
sociais, constituindo universos estigmatizados que atravessaram
séculos. Porém, é mais precisamente a partir dos
anos 90 que uma nova noção - a de exclusão - vai
protagonizar o debate intelectual e político : "se
atualmente, a maioria dos problemas sociais são apreendidos
através desta noção, é preciso ver aí,
ao mesmo tempo, o resultado da degradação do mercado de
emprego, particularmente forte no início desta década,
e também a evolução das representações
e das categorias de análise" (Paugam[1]
1996:14)
Tem-se
atribuído a René Lenoir[2]
a invenção dessa noção em 1974. Homem
pragmático e sensível às questões
sociais, cujas teses emanam do pensamento liberal e foram fortemente
criticadas pela esquerda, teve, com sua obra, o mérito de
suscitar o debate, alargando a reflexão em torno da concepção
de exclusão, não mais como um fenômeno de ordem
individual mas social, cuja origem deveria ser buscada nos princípios
mesmos do funcionamento das sociedades modernas. Dentre suas causas
destacava o rápido e desordenado processo de urbanização,
a inadaptação e uniformização do sistema
escolar, o desenraizamento causado pela mobilidade profissional, as
desigualdades de renda e de acesso aos serviços. Acrescenta,
ainda, que não se trata de um fenômeno marginal referido
unicamente à franja dos subproletários, mas de um
processo em curso que atinge cada vez mais todas as camadas sociais.

A
concepção de exclusão continua ainda fluída
como categoria analítica, difusa, apesar dos estudos
existentes, e provocadora de intensos debates. Alguns consideram a
exclusão como um novo paradigma em construção,
“brutalmente dominante há alguns anos, enquanto que o
da luta de classes e desigualdades dominou os debates políticos
e a reflexão sociológica desde o fim da Segunda Guerra
mundial” (Schnapper[3],
1996:23)
Muitas
situações são descritas como de exclusão,
que representam as mais variadas formas e sentidos advindos da
relação inclusão/exclusão. Sob esse
rótulo estão contidos inúmeros processos e
categorias, uma série de manifestações que
aparecem como fraturas e rupturas do vínculo social (pessoas
idosas, deficientes, desadaptados sociais; minorias étnicas ou
de cor; desempregados de longa duração, jovens
impossibilitados de aceder ao mercado de trabalho; etc.). A reflexão
de Julien Freund, no Prefácio da obra de Martine Xiberras[4],
denota uma certa saturação da utilização
indiscriminada dessa noção:

“a
noção de exclusão está tendo o destino da
maior parte dos termos consagrados atualmente pela mediocridade das
modas intelectuais e universitárias. Alguns consideram que
está saturada de sentido, de ‘non -sens’ e de
contra-senso; (...) A leitura da imprensa é particularmente
instrutiva desse ponto de vista, pois, ela é mais do que o
espelho de nossa sociedade’.
Assim,
mesmo os estudiosos da questão concluem que do ponto de vista
epistemológico, o fenômeno da exclusão é
tão vasto que é quase impossível delimitá-lo.
Fazendo um recorte “ocidental” poder-se-ia dizer que
“excluídos são todos aqueles que são
rejeitados de nossos mercados materiais ou simbólicos, de
nossos valores” (Xiberras:21). Na verdade, existem valores
e representações do mundo que acabam por excluir as
pessoas. Os excluídos não são simplesmente
rejeitados fisicamente, geograficamente ou materialmente, não
somente do mercado e de suas trocas, mas de todas as riquezas
espirituais, seus valores não são reconhecidos, ou seja
há, também, uma exclusão cultural.
Do
ponto de vista da situação global internacional,
observa-se o esgotamento de duas figuras emblemáticas da
evolução do século XX: se o socialismo morreu,
como querem muitos, o Estado-providência está em estado
prolongado de crise. Nos anos 80, assistimos ao declínio dos
Welfare States. Como bem diz Rosanvallon em seu último
livro “A nova idade das desigualdades”[M1] [5]
é necessário que se renovem as análises, pois,
com o desenvolvimento da mundialização, novas relações
entre economia, política e sociedade estão sendo
estabelecidas. Vivemos ao mesmo tempo o esgotamento de um modelo e o
fim de uma forma de inteligibilidade do mundo. A chamada “invenção
do social”, que constituiu a grande “virada” do
séc. XIX, parecia ter se consolidado, neste século,
através da construção de sistemas de proteção
social. Estes porém, se encontram abalados pela
internacionalização da economia e pela crise do
Estado-providência, representada pela crise da solidariedade e
do vínculo social, ampliada pela transformação
das relações entre economia e sociedade (a crise do
trabalho) e dos modos de constituição das identidades
individuais e coletivas (a crise do sujeito) (Rosanvallon, 1996:7 e
ss).

Observa-se,
pois, uma espécie de impotência do Estado-Nação
no controle das conjunturas nacionais. Os problemas sociais se
acumulam, justapondo, no seio das sociedades, categorias sociais com
renda elevada ou relativamente elevada ao lado de categorias sociais
excluídas do mercado e por vezes da sociedade[6].

Ao
se tratar concretamente do tema da exclusão é
necessário precisar o espaço de referência
que provoca a rejeição (categoria fundamental).
Qualquer estudo sobre a exclusão deve ser contextualizado no
espaço e tempo ao qual o fenômeno se refere.

Assim,
se considerarmos como espaço de análise da exclusão
os países ditos de primeiro mundo, necessariamente se tem que
tomar esse acirramento da crise do Estado-providência[7],
nos anos oitenta, as transformações em curso no mundo
do trabalho - que estão na origem da crise da sociedade
salarial, com a emergência do desemprego e da precarização
das relações de trabalho -, como problemas centrais
dessas sociedades. Surge, então, um novo conceito de
precariedade e de pobreza, o de nova pobreza, para designar os
desempregados de longa duração que vão sendo
expulsos do mercado produtivo e os jovens que não conseguem
nele entrar, impedidos do acesso ao “primeiro emprego”.
Ou seja, são camadas da população consideradas
aptas ao trabalho e adaptadas à sociedade moderna, porém,
vitimas da conjuntura econômica e da crise de emprego. Assim,
os excluídos na terminologia dos anos 90, não são
residuais nem temporários, mas contingentes populacionais
crescentes que não encontram lugar no mercado.
“No
campo internacional, a passagem do predomínio do termo pobreza
para exclusão significou, em grande parte, o fim da ilusão
de que as desigualdades sociais eram temporárias... A exclusão
emerge, assim, no campo internacional, como um sinal de que as
tendências do desenvolvimento econômico se converteram.
Agora - e significativamente - no momento em que o neoliberalismo se
torna vitorioso por toda a parte, as desigualdades aumentam e parecem
permanecer” (Nascimento[8]:
1995:24)
Embora
possamos aplicar esta mesma grade de análise para países
como o Brasil, que está inserido, ainda que com
características específicas, na ciranda da
globalização, é necessário ressaltar que
coexistem em nosso país diferentes causas de pobreza e de
exclusão social. A matriz escravista brasileira, além
de perpassar nosso passado, está presente no cotidiano de
nossa sociedade, em manifestações as mais variadas. As
noções de pobre e pobreza figuram no horizonte
histórico da sociedade brasileira e são explicativas
das formas como o cenário público brasileiro tratou a
questão social.. Conforme bem demonstra Vera Telles[9]
(1996:6), “tema do debate público e alvo privilegiado
do discurso político, a pobreza sempre foi notada, registrada
e documentada. Poder-se-ia dizer que, tal como uma sombra, a pobreza
acompanha a história brasileira, compondo o elenco de
problemas, impasses e também virtualidades de um país
que fez e ainda faz do progresso (hoje formulado em termos de uma
suposta modernização) um projeto nacional”.
Do
ponto de vista da utilização pelos cientistas sociais
brasileiros de termos para designar esses fenômenos de
iniquidades e desigualdades sociais, verifica-se que a noção
de exclusão social aparece na segunda metade dos anos
80, em trabalhos de Hélio Jaguaribe e também na mídia
e em trabalhos acadêmicos, acompanhando o movimento
internacional.
Trabalhos
contemporâneos reforçam a importância crescente do
aprofundamento dessa noção. Pesquisa recentemente
publicada, organizada pela Profa Aldaíza Sposatti[10],
retrata a situação de exclusão na cidade de São
Paulo, e reforça o caráter estrutural desse fenômeno:
"A
desigualdade social, econômica e política na sociedade
brasileira chegou a tal grau que se torna incompatível com a
democratização da sociedade. Por decorrência, tem
se falado na existência da apartação social. No
Brasil a discriminação é econômica,
cultural e política além de étnica.
Este
processo deve ser entendido como exclusão, isto é,
uma impossibilidade de poder partilhar o que leva à vivência
da privação, da recusa, do abandono e da expulsão
inclusive, com violência, de um conjunto significativo da
população, por isso, uma exclusão social
e não pessoal. Não se trata de um processo individual,
embora atinja pessoas, mas de uma lógica que está
presente nas várias formas de relações
econômicas, sociais, culturais e políticas da sociedade
brasileira. Esta situação de privação
coletiva é que se está entendendo por exclusão
social. Ela inclui pobreza, discriminação,
subalternidade, não eqüidade, não acessibilidade,
não representação pública"
É
preciso ressaltar, no entanto, que pobreza e exclusão não
podem ser tomadas simplesmente como sinônimos de um mesmo
fenômeno, porém estão articuladas conforme
buscaremos demonstrar nas análises que se seguem.

Tomando
como fonte inicialmente autores franceses contemporâneos,
destacaremos alguns conceitos que compõem esse universo.
Conceitos estes que emergem de diferentes matrizes psicológicas
e sociológicas:

a)  
a desqualificação: processo relacionado a
fracassos e sucessos da integração, a partir da obra de
Paugam, o qual considera a pobreza como sendo de uma parte
“produto de uma construção social’”
e de outra “problema de integração normativa e
funcional” de indivíduos, que passa essencialmente
pelo emprego. A desqualificação social aparece como o
inverso da integração social. O Estado é então
convocado a criar políticas indispensáveis à
regulação do vínculo social, como garantia da
coesão social (Paugam, 1991, 1993);
b)  
a "desinserção": trabalhada por
Gaujelac e Leonetti[11]
como algo que questiona a própria existência das pessoas
enquanto indivíduos sociais, como um processo que é o
inverso da integração. Não há uma relação
imediata entre desinserção e situações
sociais desfavoráveis, logo, não há relação
imediata entre desinserção e pobreza. Estes autores
buscam demonstrar o papel essencial da dimensão simbólica
nos fenômenos de exclusão. Eles analisam os
acontecimentos objetivos na esfera do emprego e do vínculo
social, mas ressaltam os fatores de ordem simbólica, pois "é
o sistema de valores de uma sociedade que define os "fora de
norma" como não tendo valor ou utilidade social", o
que conduz a tomar a desinserção como fenômeno
identitário na "articulação de elementos
objetivos e elementos subjetivos";