G-20: De locomotiva e vagões
O G-20 foi criado em 1999 e tem como países-membros a locomotiva do sistema econômico internacional, as sublocomotivas, bem como os vagões de 1ª classe e classes inferiores (ver Quadro 1). São 19 países e a União Européia tem representação própria. A análise do comunicado final do G-20 de 2 de abril de 2009 mostra que há poucas diferenças marcantes em relação ao comunicado da reunião de 11 de novembro de 2008. Entretanto, há compromissos específicos de fortalecimento de organizações multilaterais retrógradas e imposição a alguns países em desenvolvimento do compartilhamento dos custos de contenção da crise global.
Como a grande maioria dos comunicados finais de reuniões internacionais em momentos de crise, o comunicado de abril do G-20 é repleto de banalidades. Lugares-comuns estão presentes nas diretrizes estratégicas bem como nas promessas de ações futuras. Neste último, não há compromissos específicos que envolvem recursos e cronogramas.
O comunicado do G-20 menciona genericamente objetivos de recuperação da confiança e do crescimento econômico, solução da crise financeira, promoção do comércio internacional, e construção de “uma recuperação includente, verde e sustentável”. Estas diretrizes não implicam compromissos políticos de maior relevância. Isto não significa total ausência de acordos. Dentre os acordos que têm compromissos específicos cabe destacar: ajuda externa de US$ 50 bilhões para os países com mais baixo nível de renda e financiamento em termos concessionais de US$ 6 bilhões a partir da venda de ouro que faz parte das reservas do FMI. No que se refere à primeira proposta, parece que os US$ 50 bilhões não implicam acréscimo de ajuda externa e, sim, um novo patamar. Não é revelado o acréscimo relativo, nem metas de ajuda externa referenciadas, por exemplo, ao PIB dos países doadores. Os recursos provenientes do FMI (US$ 6 bilhões) são pouco expressivos para os países em desenvolvimento; na realidade, são ridículos.
Entretanto, há um conjunto específico de compromissos que envolvem diretamente o funcionamento dos sistemas monetário e financeiro internacional. No que se refere ao primeiro, o foco é a ampliação dos recursos do FMI, bem como compromissos em aberto de reforma da governança desta instituição-chave do sistema monetário internacional. Os recursos direcionados ao FMI seriam da ordem de US$ 750 bilhões, sendo que US$ 250 bilhões seriam comprometidos no curto prazo a partir da subscrição do capital do FMI, inclusive, por países em desenvolvimento. O restante seria proveniente da alocação de Direitos Especiais de Saque (DES – moeda escritural do FMI) no médio prazo, expansão de linhas de financiamento com subscrição e empréstimos no mercado financeiro internacional. A reforma da governança do FMI seria discutida nos próximos dois anos, dando continuidade, a uma processo de discussão que tem um quarto de século. O compromisso é discutir propostas no início de 2011.
Estes compromissos significam, de um lado, que os países desenvolvidos estão transferindo para os países em desenvolvimento parte dos custos do ajuste que muitos países em desenvolvimento têm que fazer como resultado da crise econômica global. Estes ajustes decorrem também da vulnerabilidade externa de países em desenvolvimento que foi gerada por erros próprios de estratégia e política econômica. Vale notar, entretanto, que boa parte destes erros derivam da aceitação por parte destes países das diretrizes oriundas dos governos dos países desenvolvidos (veja, por exemplo, o famigerado Consenso de Washington) e impostas pelos próprios organismos internacionais como o FMI e o Banco Mundial.
Tomemos o exemplo do México, que se tornou um vagão de 5ª classe no sistema econômico internacional a partir da decisão de 1994 de criação do NAFTA (Acordo de Livre Comércio das Américas) que atrelou irremediavelmente a economia mexicana à economia-locomotiva (EUA). Mais uma vez, o México quebra e recorre ao FMI. Exemplo no atacado pode ser dado no caso dos países da Europa Central e Oriental que, após a ruptura do bloco comunista, envolveram-se em trajetórias capitalistas marcadas pela exlusão social, desigualdade e vulnerabilidade externa. Muitos destes (Ucrânia, Hungria, etc.) já estão “passando o pires” no FMI.
De outro lado, alguns países em desenvolvimento estão dispostos a contribuir recursos para o FMI com o intuito de aumentar seu poder de voto na instituição. O Brasil, por exemplo, tem 1,38% dos votos do FMI tendo em vista que o país tem US$ 4,5 bilhões do capital do Fundo (total de US$ 321 bilhões). Consta que o governo brasileiro estaria disposto a contribuir com US$ 10 bilhões, mais de 5% das reservas internacionais do país. O objetivo desta contribuição seria, além do aumento do poder de voto, influenciar na reforma do FMI no sentido de “democratizar” o processo de decisão e flexibilizar o sistema de condicionalidades associado aos empréstimos do Fundo.
Esta estratégia do Governo Lula deve ser criticada a partir de inúmeros argumentos. O primeiro é o custo de oportunidade do uso de US$ 10 bilhões. É evidente que o país tem um conjunto imenso de oportunidades de investimento com benefício social muito maior do que algum benefício derivado da subscrição de cotas do FMI.
O segundo argumento é que a eventual contribuição de US$ 10 bilhões não implica ganho significativo de poder de voto do Brasil.
O terceiro argumento é que as instituições de Bretton Woods, com destaque para o FMI, estão senis. Há décadas, inúmeras têm sido as manifestações para o fechamento do FMI. Dentre as mais recentes vale destacar a do prêmio Nobel, Edward Prescott, legítimo representante do mainstream e do establishment (ver Quadro 2). O fechamento do FMI (e também do sistema Banco Mundial) vem acompanhado, por exemplo, da proposta de que os recursos destes organismos caquéticos seriam transferidos para um Fundo de Desenvolvimento Mundial, fora do controle dos governos, para financiar projetos com impacto social e focados nos interesses da classe trabalhadora.
No que se refere ao sistema financeiro internacional, o comunicado do G-20 menciona a expansão do crédito para o comércio internacional no valor de US$ US$ 250 bilhões e reforço do capital dos bancos multilaterais de desenvolvimento (Banco Mundial, BIRD, etc) no valor de US$ 100 bilhões. Há referência específica às agências de financiamento do comércio (os Eximbanks) e às agências de investimento. Muito provavelmente, cada país ampliará o financiamento das suas próprias exportações. No que se refere ao investimento, a maior disponibilidade de recursos provavelmente envolverá, como contrapartida, a aquisição de direitos em setores de interesse (quem sabe, o Pré-sal e os recursos naturais mais importantes no Brasil) com garantia de investimento (acordos de garantia de investimentos), bem como a maior liberalização, desregulamentação e privatização. Ou seja, mais vulnerabilidade externa estrutural na esfera produtiva dos países em desenvolvimento. Quanto aos recursos para os bancos multilaterais não há menção das fontes de financiamento.
O comunicado do G-20 inclui, ainda, compromissos genéricos acerca da regulação do sistema financeiro internacional. Além da criação de mais um fórum de discussão (Financial Stability Board), que muito provavelmente, não terá resultados práticos, o comunicado é explícito quanto à imposição de sanções sobre paraísos fiscais. Entretanto, não se especificam os mecanismos de pressão e sanções (por exemplo, embargos comerciais). Esta manifestação, bem como a aquela referente aos bônus dos executivos do sistema financeiro, refletem sobremaneira o lado mediático (no sentido de “pouco sério”) da reunião do G-20.
Para concluir e, aproveitando que foi feita referência ao “lado mediático”, cabe fazer um comentário sobre a atuação do Governo Lula no G-20. Deixando de lado a questão irrelevante do papel de “bufão global” desempenhado por Lula e que foi destacado na imprensa global e nacional, é lamentável verificar que o país seja capturado pela agenda dos países desenvolvidos. Esta agenda nos leva a “pagar pedágio” para ter presença maior, ainda que irrelevante no FMI – instituição retrógrada que deveria ter sido fechada há anos. Vale notar que o Brasil é o país que mais recursos pediu emprestado ao FMI em toda a sua história. Lula é, provavelmente, o chefe de Estado que mais pagou juros e taxas ao FMI em toda a história do Fundo (1948-2008). No período 2003-06, Lula pagou US$ 3,541 bilhões ao FMI, no contexto de excesso de liquidez internacional e crescente saldo das contas externas do país. Puro desperdício de recursos escassos para, simplesmente, manter linhas de crédito em aberto! Talvez aqui esteja a chave da expressão usada por Obama: “este é o cara”! O “cara” que mantém alta popularidade com péssima governança.
Talvez sejamos levados também a contribuir para bancos multilaterais que têm como foco a liberalização, desregulamentação e a privatização. Ou seja, os atuais grupos dirigentes brasileiros – candidatos a Bismarcks dos trópicos que pensam influenciar a geopolítica internacional – desperdiçam recursos escassos (além das passagens e diárias) que poderiam estar sendo aplicados na educação, saúde, infraestrutura, segurança e reconstrução institucional do país.
Provavelmente, a rainha Elizabeth ao se despedir de Lula, tenha se divertido pensando no Ato V de Hamlet, quando o príncipe da Dinamarca encontra o primeiro coveiro e se depara com o crânio de Yorick, o bobo do rei. A passagem de Lula por Londres deixou uma grande inquietação: quem melhor descreve Yorick: o primeiro coveiro ou Hamlet? Yorick não sobreviveu, o reino da Dinamarca apodreceu! Pobre o país que tem o “bufão global” à frente de um “vagão de 4ª classe” da economia mundial, que se encontra descarrilhado.