MULHER MIGRANTE
“Em busca de um sonho, o trabalho semi escravo
torna-se apenas uma das muitas dificuldades enfrentadas pelas mulheres migrantes bolivianas”
A migração de milhares de mulheres dos países pobres para os ricos, ou mesmo dentro de América Latina, tem tudo a ver com as políticas macroeconômicas impostas pelos organismos multilaterais. O pagamento das dívidas além de empobrecer os países, impede que os mesmos se desenvolvam de forma sustentável e obriga a milhares de jovens, homens e mulheres a buscar melhores condições de vida em outros países. Um ciclo econômico injusto e imoral que afeta particularmente as mulheres.
Cada centavo que se paga de dívida, são menos recursos para educação, para saúde e para a segurança alimentar das mulheres e suas famílias. Milhares são condenadas ao trabalho precário e mal remunerado e, muitas vezes, não pago, ao despejo de suas terras, à privatização dos serviços públicos. As mulheres são credoras de uma enorme dívida histórica, ecológica, social, ética e financeira que tem se acumulado ao longo da história de colonização patriarcal e que continua hoje se acumulando com conseqüência da exploração capitalista, do saque dos nossos recursos de nossas economias e de nossos povos.
Não é de hoje que escrevemos e falamos sobre os milhares de migrantes que partiram de suas terras em busca de promessas de melhores dias. O caso das migrações bolivianas no Brasil é um exemplo típico. Enganados por falsas promessas de trabalho digno e bem remunerado, homens, mulheres e crianças chegam diariamente ao Brasil para enfrentar a dura rotina no comando de máquinas de costura confinadas em cômodos apertados, escuros e insalubres nos bairros do Bom Retiro, do Pari, da Mooca, do Brás, do Canindé... etc, na grande metrópole de São Paulo. “Estava trabalhando na Bolívia e o trabalho estava indo mal. Eu e minha esposa escutamos na rádio que precisava pessoas para trabalhar no Brasil, nos disseram que iriam pagar bem, que iríamos ganhar uns USD 200 por mês, mas chegando aqui no foi bem assim, e nos sentimos confusos. Os dias passaram, e o dono da oficina já não nos deixava sair à rua. Encerrou-nos e eu não sabia o que fazer por que tinha minha esposa, meu primo. Se fosse discutir com o dono ele iria tratá-los mal, e por temor preferi ficar calado. Minha esposa estava grávida de um mês e mesmo assim seguia trabalhando para pagar o que devíamos. O dono da oficina que tinha nos emprestado dinheiro para atravessar a fronteira nos fazia trabalhar até uma ou duas da manhã, para pagar-lhe aquele maldito dinheiro. (Pedro M. L.) 06 de setembro de 2006.
Esta é uma das centenas de milhares de denúncias que recebe o CAMI – Centro de Apoio ao Migrante, localizado no bairro do Pari, em São Paulo.
Porém, há um aspecto ainda pouco denunciado e debatido, mas que perpassa o cotidiano da vida dessas pessoas no Brasil mostrando que, mais difícil ainda, é a vida das mulheres bolivianas imigrantes. Dificuldades que vão muito além da exploração do trabalho: são problemas com documentação, questões relacionadas a trabalho (muitos casos de insalubridade, doenças, não recebimento pelo trabalho nas oficinas de costura) até e, infelizmente, casos de violência doméstica.
Vale ressaltar aqui que o fenômeno migratório tem sido objeto de discussão a partir de vários aspectos teóricos e de maneira interdisciplinar nas ciências sociais. Muito importante para que se possa superar esta forma desumana da exploração capitalista. Contudo, até pouco tempo, a mulher migrante era vista apenas como aquela que acompanha marido e filhos na grande aventura de lutar por dias melhores. Embora seja a figura feminina que facilita a socialização dos seus no país de destino, é ela quem mais sofre no processo.
Neste sentido queremos dedicar nossa atenção nesta abordagem sobre a migração boliviana em São Paulo, a partir das questões femininas. Embora saiam nutridas de sonhos e com a intenção de melhorar de vida, ao cruzarem a fronteira, muitos dos preconceitos de gênero tornam-se ainda mais relevantes. São vítimas de muitas violências, inclusive a doméstica. Muitas delas estão em situação irregular, o que dificulta o acesso a mecanismos de apoio. A situação de ilegalidade e a dificuldade lingüística impedem-nas de se deslocarem aos serviços de apoio à vítima. Inclusive, isso dificulta muito conhecer os índices desta realidade. As mulheres imigrantes, além de serem confrontadas com as desigualdades de gênero, deparam-se também com as barreiras étnicas e racistas de acolhimento.
A cadeia produtiva do rendoso mercado das confecções resume-se no recrutamento de mão de obra barata da Bolívia (cerca de 1200 a 1500 chegam por mês para trabalhar em São Paulo). A maioria em pequenas confecções de costura clandestinas localizadas em 18 bairros de São Paulo que fornecem as mercadorias para as grandes lojas como Marisa, Riachuelo, Renner e C&A etc.
Estes imigrantes fazem jornadas muito acima do que a lei permite, ganham centavos por peça produzida e moram no local de trabalho. São vários homens, mulheres e crianças alojados em um mesmo cômodo, muitas vezes sem ventilação, com fiação exposta oferecendo muitos riscos a saúde, especialmente a tuberculose. O direito de ir e vir é privado porque, em geral, o migrante tem uma dívida com o empregador pela forma como chegou ao Brasil. Então, embora não estejam acorrentados/as, a super exploração e a falta de liberdade pode caracterizar a condição análoga de trabalho escravo.
Enganados, humilhados e desesperançados, muitos migrantes encontram na bebida uma espécie de anestésico para conviver com a situação. O resultado, ainda mais desastroso, recai sobre os ombros da mulher. É ela que agüenta toda a frustração e desconforto dos companheiros que, muitas vezes são traduzidos por atos de violência moral e física.
Se esta situação de violência doméstica já é difícil para a mulher brasileira que, tem muita dificuldade em assumir e denunciar situações de agressão, embora atualmente sejam amparadas pela Lei Maria da Penha - que dá maior proteção as vítimas de violência aumentando a punição aos agressores – imaginem a situação da mulher boliviana Brasil? Sem documento, em situação de trabalho irregular e ainda com o peso da cultura de submissão, sofre na alma, na mente e no corpo as injustiças e agressões de um modelo neoliberal que não só escraviza o modo de produção, mas desumaniza as relações entre homens, mulheres e crianças. Lembrando que a migrante, mulher em geral é também mãe e ainda encara o sofrimento de ver seus filhos marginalizados ou ridicularizados no ambiente escolar, muito embora o Estatuto da Criança e Adolescente diga que nenhuma criança pode ficar fora da escola. Mas a realidade é outra. Muitas escolas não aceitam filhos e filhas de migrantes.
O trabalho com as mulheres bolivianas, às vezes, é comprometido pela dificuldade de comunicação. Muitas não falam o português. Entre elas, não são raros os casos de saúde debilitada por Doenças Sexualmente Transmissíveis, como a Sífilis. Um dos fenômenos mais recentes e preocupantes tem sido o número de bolivianas que têm filhos ainda na adolescência. "Elas fogem de seu país de origem, acompanhadas de seus parceiros, também muito jovens”.
Um caso recente atendido pelo CAMI foi o de Zilda, uma boliviana de 22 anos que sentiu na pele todo o sofrimento de uma estrutura de sociedade corrompida pela ganância e com enorme dívida social com as mulheres. “Chegamos da Bolívia, eu, meu marido e três filhos. O dono da oficina nos trouxe para cá. No começo moramos numa favela próximo ao Wal Mart... Mas depois de um tempo fomos levados para uma oficina de costura que fica escondida. Ficávamos trancados, só hoje o dono abriu a porta para eu sair e me virar. Ficamos lá uns oito meses. Trabalhávamos o dia inteiro e noite adentro. Recebíamos uns cinqüenta reais por mês e nada mais. De manhã comíamos pão. Era um para meu marido, um para mim e cortava outro pão em três pedaços para repartir com as crianças. Enquanto estávamos costurando meus filhos ficavam trancados no quarto ou então amarrados para não colocar as mãos na maquina e não atrapalhar o rendimento do serviço. O patrão ficava bravo quando as crianças incomodavam. Ele também tinha filhos, eles beliscavam os meus e ninguém dizia nada. Domingo encontrei meu marido na cama com a sobrinha do dono da oficina. Depois que vi tudo, ele me agrediu, arrasto-me pelo cabelo e eu gritei por socorro mas não tive ajuda. Meu marido me mandou embora, disse que eu sou mulher com filhos e ainda grávida, ninguém vai me dar emprego. Falei com o dono e ele me deu a chave para sair daquela prisão. Fiquei na rua, “en la calle com los niños”. Passou uma senhora brasileira que me deu dez reais para comprar comida. Uns bolivianos que viram minha situação me levaram a sua casa e me deram um lugar para passar a noite. Passei uma noite e sai sem comer nada, sem roupa.Não tinha onde pedir ajuda. Uns bolivianos me levaram ao Centro de Apoio ao Migrante onde me deram água, comida, pude tomar um banho. Depois me encaminharam para uma hospedagem (AVIM – Casa do Migrante). Agora quero voltar à Bolívia.
Paulo Illes, coordenador do CAMI informou que a advogada do Centro cuidou do caso. O marido e o dono da oficina foram intimados e devem ajudar com a pensão e a passagem para que ela retorne a Bolívia. Zilda não tem ninguém de sua família em São Paulo. Lembra que a situação e a aparência com que ela chegou até o Centro de Apoio ao Migrante eram apavorantes. A criança estava há mais de dois dias com a mesma fralda e sem tomar banho. Era subumana e indescritível a situação. Grávida de quatro meses ainda não havia iniciado a consulta pré-natal.
Illes lembra ainda que a prática de deixar as crianças amarradas é muito comum nas oficinas onde tem trabalho escravo. Nas oficinas maiores as crianças ficam trancadas no quarto por várias horas, sem nenhum contato com os pais. Já onde os espaços são menores, as mães costumam deixar as crianças amarradas na perna da cadeira para não mexerem nas máquinas. O resultado dessa barbárie percebe-se no contato com as crianças. Quando deixam a oficina, elas não se mexem, não brincam, não falam, ficam quietinhas perto da mãe. Uma violência indescritível para uma mãe.
Estes são alguns dos milhares de casos que acontecem cotidianamente na vida destas mulheres. Há outros depoimentos como a de uma jovem que viu seu amigo sendo torturado e morto por um coreano contra a máquina de costura porque não produziu a cota estabelecida. A denúncia foi feita e a policia nada fez. Outra mulher viu seus filhos mortos pela tuberculoses sem poder levá-los ao hospital. E a pequena Jaqueline que está com câncer. O pai abandonou sua mãe por que a doença estava gerando muitas despesas.
Vendo as condições de vida destas mulheres imigrantes, testemunhamos um enorme vazio em nível de políticas públicas para auxiliar este segmento. Um dos desafios propostos para nossas redes de ação é o de fomentar ações e pautar em todas as áreas do serviço público municipal, estadual e federal a questão da mulher imigrante, principalmente no que diz respeito ao acesso a serviços básicos nas áreas de saúde, educação e geração de renda.
Em pleno século 21 não podemos abrir mão de valores universais fundamentais como a liberdade. Homens e as mulheres têm que ter garantidos o direito de viver sua vida e de criar seus filhos com dignidade, livres da fome e livres do medo da violência, da opressão e da injustiça. A igualdade de direitos e de oportunidades entre homens e mulheres deve ser garantida. Precisamos conquistar a proteção plena e a promoção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais de todas as pessoas, em todos os países, com respeito aos direitos humanos, sobretudo os direitos das minorias.
Conclamamos a todas as redes e movimentos a lutar contra todas as formas de violência contra a mulher, em particular, lutar por medidas para garantir o respeito e a proteção dos direitos humanos dos migrantes para acabar com os atos de racismo e xenofobia, cada vez mais freqüentes em muitas sociedades, e para promover maior harmonia e tolerância em todas as sociedades e entre todos os gêneros. A luta pela Cidadania Universal aponta nesta direção.