Movimentos sociais atacam acordos entre UE e ex-colônias

2007-01-23 00:00:00

De olho em suas ex-colônias na África, Caribe e região do Pacífico, conhecidas pela sigla ACP, os negociadores europeus querem aproveitar os laços históricos e abrir novos mercados para os produtos de suas empresas.
NAIRÓBI – O Mercosul não é a única frente da batalha mantida pela União
Européia (UE) para firmar acordos de livre comércio. De olho em suas ex-
colônias na África, Caribe e região do Pacífico, conhecidas pela sigla ACP, os
negociadores europeus querem aproveitar os laços históricos e abrir novos
mercados para os produtos de suas companhias. Chamados de Acordos de Parceria Econômica (EPA, sigla em inglês), prevêem a liberalização das transações de produtos, serviços e de investimentos, de modo a criar uma grande área de livre comércio entre UE e ACP.

Os europeus pressionam para que a assinatura final seja firmada em primeiro de janeiro de 2008, como previsto, mas as negociações estão atrasadas por uma série de fatores, desde simples dificuldades técnicas e diplomáticas dos países mais pobres, como desinteresse das nações da ACP em alguns pontos da agenda proposta pela UE.

Para os movimentos sociais, essa demora é bem-vinda. Aqui do Fórum Social Mundial do Quênia, o tema dos EPAs é um dos mais discutidos pelas organizações de produtores agrícolas. Mas as opiniões são divergentes, sobretudo na questão da agricultura, atividades que é responsável pela maioria da riqueza gerada em grande parte das nações da ACP. De um lado, estão os que defendem que a ACP deixe as negociações; do outro, movimentos que pedem mudanças nos acordos, mas acreditam que o resultado pode ser positivo para os agricultores.

Entre os que sustentam essa segunda posição, estão a Federação dos
Agricultores do Leste da África, as Organizações Camponesas do Centro da
África, a Confederação Sul-africana das Uniões Agrícolas, a Associação dos
Produtores Agrícolas do Caribe e a Rede das Organizações Camponesas e de Pequenos Agricultores do Oeste da África. Reunidas para um debate sobre os EPAs no Fórum do Quênia, elas pedem mais voz nas negociações. Entretanto, acreditam que os trabalhadores podem ser beneficiados pela abertura comercial se uma série de proteções for criada.

“Nós achamos que é importante esse debate porque não são todos os acordos de livre comércio que são ruins. Acredito que os governos nos ouvirão, porque a agricultura é um setor fundamental para a geração de riquezas na África”, afirma Julius Moto, de Uganda, coordenador da Federação dos Agricultores do Leste da África. Ao contrário de outras organizações agrícolas importantes que participam do Fórum, sua Federação defende a criação de regras internacionais para as trocas comerciais no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), ainda que com o reconhecimento das desigualdades entre os países através de
mecanismo de proteção em alguns deles.

Mudanças pretendidas
Para o ugandense Julius Moto, é preciso avançar no debate sobre produtos
agrícolas sensíveis, por exemplo. É o caso de alimentos que são cultivados na Europa com tecnologia mais avançada e que poderiam ser importados pela ACP, prejudicando produtores locais. Em vez de acelerar a integração, acordos como esses poderiam criar novas dificuldades e “o resultado será mais desintegração, ingovernabilidade e zonas de instabilidade”, afirma Moto.

É a mesma opinião de Ouedraogo Ousseini, de Burkina Faso, representante da Rede das Organizações Camponesas e de Pequenos Agricultores do Oeste da África. Segundo ele, mudanças no andamento das negociações são importantes para os africanos, onde em muitos países “60% da população vive de atividades agrícolas”. “O problema é que os parlamentos não estão envolvidos neste debate, sequer sabem o que está sendo negociado. Para contribuir com as negociações, temos de nos mobilizar e informar sobre os interesses dos produtores”, disse.

Diante dessas dificuldades, outras organizações de agricultores defendem que os governos da ACP abandonem as negociações, numa postura semelhante à que adotam junto a OMC. George Awudi, representante dos Amigos da Terra – Internacional e Arsène Vinglassalon, da Via Campesina, vêem os EPAs como um grande risco para os produtores agrícolas das ex-colônias européias, pois estes não teriam condições competir com a alta tecnologia utilizada no Norte. No Fórum do Quênia, diversas faixas divulgadas no local do evento, o Centro Internacional de Esportes Moi, pedem o fim das negociações.

“Se esses acordos chegarem a ser fechados, as conseqüências para esses países e para o meio ambiente seriam desastrosas”, alertam a Amigos da Terra e a Via Campesina, em declaração assinada conjuntamente. Um dos problemas seria a competição desigual com as multinacionais européias, não apenas na agricultura, mas também no ramo industrial. Contra a competição na economia, Amigos da Terra – Internacional e Via Campesina defendem um ideal de soberania alimentar, segundo eles, “uma proposta crucial e uma alternativa viável aos injustos acordos comerciais”.

Outras frentes
Além dos produtos agrícolas, UE e ACP negociam a liberalização dos setores de investimentos e de serviços. Segundo os europeus, dar mais facilidade para o trânsito das companhias empresariais poderia incentivar o crescimento econômico das ex-colônias. Atualmente, os países africanos captam apenas 3% do fluxo global de investimentos. Para que esse cenário se altere, os europeus defendem mercados mais abertos e não discriminação entre empresas nacionais e estrangeiras.

Entretanto, experiências semelhantes não têm dado resultado. De acordo com a Somo – Centro de Pesquisas sobre Corporações Multinacionais, com sede na Holanda, muitos países da África já assinaram no âmbito da OMC o Acordo sobre Comércio e Investimentos, que, entre outros pontos, cria dificuldades para que governos exijam que investidores estrangeiros nacionalizem parte de sua linha de produção. Ainda assim, ainda que as economias africanas tenham crescido mais, sobretudo aquelas que exploram petróleo, o nível de pobreza da população segue inalterado.

Diante disso, Myriam Vander Stichele, da Somo, contesta: “Qual a utilidade
para a África se a maior parte dos investimentos estrangeiros que ela recebe seguem para atividades extrativas voltadas para a exportação?”, afirma, lembrando que há estudos apontando até desindustrialização de algumas regiões da África. Conforme pesquisa da Somo, companhias estrangeiras instaladas em Gana tem optado por importar mão-de-obra especializada e, na África do Sul, muitos trabalhadores são submetidos a contratos precários.

Além dos investimentos, a UE também negocia mais abertura no setor de serviços de ACP. As companhias européias são as maiores exportadores desse setor no mundo, e um acordo liberalizante as poderia beneficiar muito. Se a negociação pretendida pelos europeus for finalizada, suas companhias terão acesso a setores que sequer foram tocados pelo Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (Gats, sigla em inglês), assinado em 2000. Nesse caso, os EPAs também tiram poder dos governos para regular o mercado de serviços.

Neocolonialismo?
Apesar da divergências entre os movimentos sociais, o consenso é que o rumo tomado pelas negociações dos EPAs não agrada a nenhum deles. Uma liberalização total, pretendida pelos europeus, poderia levar a bancarrota cadeias inteiras de agricultores nos países da ACP. O embaixador queniano Hukka Wario, ministro da Comunidade do Leste Africano no Quênia e um dos negociadores da ACP, compareceu a uma das atividades do Fórum Social Mundial e disse que o objetivo de um acordo seria integrar mais europeus e ex-colônias, mas que para isso seria necessário respeitar os produtores, “desenvolvendo marcos regulatórios e
preservando sistemas tradicionais de irrigação”.

Apesar do gesto do embaixador, Julius Moto quer mais. “As pessoas não estão podendo discutir sobre o EPA, é apenas um debate entre governos, que querem decidir sozinhos sobre um tema que diz respeito a vida de todos. Queremos preservar a qualidade de vida das famílias de agricultores, que haja dinheiro no bolso do produtor. A maioria dos agricultores não vai a escola, mas tem de procurar empregos, essa é sua ocupação”, afirmou. Para Myriam, da Somo, os países da ACP não podem perder do horizonte que governos e parlamentos precisam continuar a ter capacidade de executar suas próprias políticas nacionais. Do contrário, o comando de grande parte da economia africana caberá aos europeus, mais uma vez.

Fonte:
http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia...