Governos africanos devem investir mais no combate à aids

2007-01-23 00:00:00

Na avaliação das organizações locais, os estados africanos devem assumir a responsabilidade pela saúde de sua população e não depender do limitado financiamento internacional para combater o HIV. 60% dos contaminados vivem no continente.
NAIRÓBI (QUÊNIA) – Winnie é uma menina queniana que, aos 13 anos de idade, é responsável por cuidar das quatro pessoas de sua família. É ela quem cozinha, matém a casa limpa e organizada. Há três anos, Winnie passou a integrar um dos grupos sociais que mais cresce no continente africano: o de órfãos da aids. Seu pai e sua mãe morreram vítimas da doença, deixando pra ela, como filha mais velha, além da pouca esperança em se viver, a tarefa de cuidar dos dois irmãos mais velhos e da irmã mais nova, de 10 anos, que nasceu com aids.

Num relatório lançado no ano passado com base no testemunho de crianças da África do Sul, do Quênia e de Uganda, a Human Rights Watch, uma das maiores entidades internacionais de defesa dos direitos humanos, fala da existência de cerca de 12 milhões de órfãos no continente. O estudo denuncia a ausência e a negligência dos governos no enfrentamento deste problema e afirma que são as organizações religiosas e comunitárias que apóiam os meninos e meninas que perderam seus pais, com pouca ou nenhuma participação dos Estados. Uma das principais conseqüências deste processo tem sido o abandono da escola por essas crianças, que são obrigadas então a trabalhar para sobreviver e cuidar de suas famílias. Nas regiões mais pobres de Nairobi, uma em cada cinco casas é chefiada por uma criança.

Esta, no entanto, é apenas uma faceta do gigantesco problema de contaminação da população africana pelo vírus da aids. O último levantamento da UNAids, a agência das Nações Unidas responsável pelo tema, estima que cerca de 39 milhões de pessoas em todo o mundo viviam com HIV no final de 2005. Naquele mesmo ano, mais de 4 milhões haviam sido infectadas e 2,8 milhões, morrido. Apesar do pico de contaminação ter sido atingido no final dos anos 90, e depois se estabilizado, em muitos países a velocidade da infecção ainda cresce.

É o caso da região subsaariana que, apesar de abrigar apenas 11% da população mundial, representa 60% das pessoas contaminadas. Se no mundo a aids é a quarta causa de morte, na África é a primeira. Apesar de países como o Quênia terem conseguido reduzir seus índices de contaminação, outros, como a Suazilândia, apresentam assustadoras taxas de infecção, beirando os 35% da população. A maior parte dos doentes tem entre 15 e 50 anos, o que afeta a força de trabalho e parte da possibilidade de desenvolvimento econômico. O Instituto Wordwatch já chegou a falar mudança no futuro demográfico da África por conta da epidemia da aids.

“O processo de dizimação de povos não escolhe raças. Os pigmeus foram dizimados do leste africano. Os massai eram o maior grupo da região e foram destruídos por uma doença. É isso que está acontecendo com a aids agora”, afirma o professor Kihumbu Thairu, da Faculdade de Medicina da Universidade Moi, do Quênia, e chefe da Comissão de Ensino Superior do país. “A aids, no entanto, é uma epidemia totalmente artificial. Não é transmitida pela picada de insetos, nem pela água, não é contagiosa. O mau que este vírus pode causar no continente, no entanto, é maior do que o tráfico negreiro e o colonialismo juntos. Cerca de 500 africanos são contaminados por dia”, afirma Thairu.

O desafio do financiamento

Em dezembro de 2002, a ONU lançou o Fundo Global para o Combate da Aids, da Tuberculose e da Malária. Cerca de 20% dos recursos internacionais para o enfrentamento da doença, incluindo prevenção, terapias, apoio e cuidado com órfãos, vêm hoje deste fundo. Em 2005, seu orçamento foi de um bilhão de dólares, de um total de 8 bilhões gastos em todo o planeta para financiar o setor. Comparado à média de 266 milhões de dólares despendida anualmente no período entre 1996 e 2001, o aumento foi considerável. No entanto, ainda está longe do necessário. De acordo com os cálculos da Unaids, seriam necessários mais de 18 bilhões de dólares para o enfrentamento do HIV neste ano de 2007. As estimativas, contudo, não ultrapassam os 10 bilhões.

Nos debates sobre o assunto realizados durante a sétima edição do Fórum Social Mundial, um caminho considerado seguro para ampliar o financiamento da Aids é garantir maior dotação orçamentária dos países. Os gastos chamados domésticos aumentaram nos últimos anos na África Subsaariana, mas ainda são insuficientes. Faltam recursos tanto para acompanhar a evolução da doença nos pacientes como para garantir terapias e o tratamento das infecções oportunistas. No Quênia, por exemplo, somente 19% dos adultos e 5% das crianças que necessitam de medicação estão sendo tratadas.

“Na Nigéria, só 5% das pessoas estão sob tratamento. Na Índia, a mesma coisa. Na Rússia, somente 10 dos 30 mil estão sendo medicados. Na República Dominicana, somente 6 de 14 mil. No mundo todo, 5 milhões de pessoas que requisitaram tratamento encontram-se desassistidas”, relata o ativista queniano James Kamao. Portador do HIV, há 14 anos ele recebe a medicação anti-retroviral. Neste domingo (21), durante um dos debates do Fórum Social Mundial, ele comemorou o fato de estar vivo para ver sua filha se formar médica.

“Temos que refletir sobre a quantidade de recursos que está sendo investida no tratamento das pessoas infectadas. Onde está a prioridade? Mesmo se pensarmos somente no aspecto econômico, é mais barato tratar os doentes do que não dar a eles nenhum tipo de medicamento”, acredita Kamao.

A professora universitária Jemimah Nindo, que vive no distrito queniano de Kissumo, um dos lugares com maior índice de contaminação por HIV, é um exemplo disso. Viúva e mãe de um filho, por quase dois anos ela gastou a metade do que recebia como salário – cerca de R$ 500,00 – para comprar medicamentos. Até que foi obrigada a parar o tratamento. Pirou muito.

“Só sobrevivi porque meus amigos conseguiram me colocar num programa do governo. Mas e as pessoas que não recebem salário, que não têm as conexões corretas, que não têm dinheiro para fazer os exames, para ir até o hospital, que tem que optar entre alimentar o filho e se cuidar?”, questiona.

Segundo a organização Médicos Sem Fronteiras, o preço da medicação continua sendo um dos maiores obstáculos para o tratamento da aids na África. Uma das estratégias para enfrentá-lo é seguir com a política de quebra de patentes, defendida por países como o Brasil. Outra é reivindicar dos governos africanos um maior investimento no setor. Há países em que o orçamento nacional não ultrapassa 1% do total que é gasto no combate à aids.

O mal da dívida

Ao contrário do que pregam os organismos internacionais, os países africanos teriam condições de lidar com a chamada epidemia da aids sem precisar de ajuda externa. Bastaria que esta fosse uma das prioridades de suas políticas. Um dos caminhos apontados pelas organizações não governamentais do continente seria empregar, neste área, os recursos que hoje são gastos para o pagamento da dívida externa.

No último ano, por exemplo, 22% do orçamento do governo queniano foram destinados para o pagamento da dívida, uma quantia maior do que foi investido na educação e quatro vezes superior ao gasto com a saúde. Os cálculos das ONGs mostram que o Quênia já pagou 51 bilhões de dólares de dívida externa, sendo que originalmente emprestou 17.

“A ONU calculou que seriam necessários 10 bilhões de dólares por ano para combater a aids na África, mas nossos governos pagam 15 bilhões com a administração dos juros da dívida. Ou seja, temos os recursos para cuidar da nossa população. Não fazemos isso porque priorizamos o pagamento da dívida”, critica Njoki Njehu, membro da organização Filhas de Mumbi, uma das organizadoras do Fórum em Nairobi. “Este continente foi escravizado. Temos que discutir quem deve a quem. Mas, independente disso, acredito que é hora de nossos governos dizerem que não vão pagar mais nada enquanto as pessoas não puderem ser tratadas, enquanto houver fome, enquanto nossas crianças não estiverem na escola. É hora da reparação. Não podemos pagar a dívida enquanto não garantirmos os direitos fundamentais das pessoas”, afirma Njoki.

A independência financeira dos países estrangeiros também é reivindicada como uma forma de se obter a independência política acerca das decisões sobre onde serão investidos os recursos. Uma das críticas mais fortes das organizações locais é a de que os recursos estrangeiros chegam à África carimbados, com destino definido, e que, muitas vezes, são destinados a ações que apresentam poucos resultados diante da realidade local.

“Mas o problema maior não está nos doadores, mas em nós mesmos, em nossos governos. Ninguém deveria morrer de uma doença que pode ser prevenida; isso é ultrajante. Temos que diagnosticar o problema cedo, contar com a ajuda das comunidades para isso, dar uma boa alimentação para as pessoas, tratá-las. Se fizermos isso, podemos dar uma vida normal aos portadores de HIV. Não temos porque não ter esperança”, conclui o professor Kihumbu Thairu.

fonte:
http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia...