Brasil:Hip-hop como metodologia, filosofia e salvação

2005-08-09 00:00:00

MV Bill foi hoje ao Fórum Social Mundial apresentar à
imprensa a Central Única das Favelas (Cufa), organização da
qual participa, e responder perguntas sobre a iniciativa
que desenvolveu na Cidade de Deus, junto com a também
rapper Nega Giza. No entanto a coletiva percorreu diversos
temas, como questão racial e a interferência do tráfico na
vida das pessoas e no trabalho da ONG. “É impossível falar
do hip-hop sem abordar os temas de raça e exclusão social.
São eles que compõem o estilo hip-hop”.

A Cufa surgiu com o objetivo de elevar a auto-estima dos
moradores da Cidade de Deus através da arte. “Houve a
necessidade por causa da exclusão. Resolvemos usar os
princípios que o hip-hop me passou para dar oportunidade de
os favelados falarem”. Junto com Nega Giza, fundou um
centro que atualmente tem quatro núcleos na cidade do Rio
de Janeiro e simpatizantes espalhados por todo Brasil. MV
Bill comentou o encontro com o ministro da Cultura,
Gilberto Gil, em que foi criada a Frente Brasileira do Hip-
Hop, que viabilizaria projetos semelhantes à Cufa em todo o
Brasil, utilizando a mesma metodologia do estilo. “O
encontro seria mais benéfico se ocorresse com algum
ministro da área social, pois o trabalho que queremos
desenvolver tem um objetivo maior com esta área do que com
a arte em si”. No entanto MV Bill considerou a oportunidade
importante e acredita que, embora nenhuma ação efetiva
tenha sido feita, o projeto será implementado em algum
momento.

A relação com tráfico de drogas também entrou em discussão.
“A relação com o movimento é sempre de amor e ódio. Em
algum momento pode-se ter uma relação tranqüila, mas ela
pode se tornar tensa a qualquer momento”. O rapper está
produzindo um documentário inspirado no clip feito para a
música “Soldado do Morro”, que conta a história de um jovem
que trabalha para o tráfico de drogas. Insatisfeito com o
produto final, Bill começou a se dedicar à produção de um
documentário que aprofundasse a questão destes jovens.
Passou a visitar as comunidades das cidades a que ia,
colhendo depoimentos sobre diversos temas além do tráfico.

A polícia foi alvo de críticas do rapper, bem como as
políticas públicas para resolver os problemas das favelas.
“Não acho que são mais armas que vão solucionar os
problemas, mas sim a discussão. O problema está na forma
como a gente pensa o Brasil, e não nas pessoas dessas
comunidades”. A produção do filme “Cidade de Deus” também
foi criticada. MV Bill reclamou da ausência de uma
contrapartida que pudesse combater a realidade que o filme
retratava.

Empolgado com a produção do hip-hop no Brasil, o cantor
acredita que a arte política das periferias é um fenômeno
mundial. “Fui ao Fórum Mundial de Cultura, em Barcelona, e
vi movimentos de diversos países, como Bulgária e Hungria”.
Ao mesmo tempo, defendeu-se de críticas sobre a exposição
do hip-hop na mídia. Mv Bill acredita que é ocupando estes
espaços que sua mensagem pode transformar as pessoas.

Ao final da coletiva, MV Bill conversou com jornalistas:

Como você acha que é o rap é aceito pelos jovens?

Na verdade, ele é muito aceito e ouvido pelo jovem da
periferia, e depois aconteceu uma reviravolta e o jovem de
classe média passou a ouvir. E em muitos casos o jovem de
classe média está tendo uma mudança de comportamento.
Comecei a reparar isso nos shows e ver que quando eles vão
a shows de rock têm um comportamento e no show de rap têm
outro. Quando isso acontece, eu acho positivo. Mas quando
ele vê no rap a oportunidade de ficar rico, famoso, tomar o
lugar do preto no palco e, automaticamente, fugir dos
conceitos do hip-hop eu acho ruim.

Como você acha que o hip-hop pode mudar a vida das pessoas?

Assim como mudou a minha. Antes do hip-hop eu era uma
pessoa que eu posso considerar um alienado, um otário, não
tinha nada para mostrar para ninguém, nem para mim mesmo. O
hip-hop faz com que a pessoa deixe de agonizar e passe a
respirar, se sentir gente, se sentir um agente da
solidariedade. Depois que eu assimilei o espírito do hip-
hop, o espírito de combate, eu comecei a propagar isso para
as pessoas, achei que aquilo deveria ser ouvido por todos.
No início do meu trabalho eu chegava a comparar o meu
trabalho com o dos evangélicos, de pregar nos espaços
públicos. Pregava o hip-hop achando que era a solução para
as pessoas. Continuo achando. No dia que eu deixar de achar
que o hip-hop salva, que transforma, eu vou fazer outra
coisa.

Qual os principais resultados do seu trabalho na Cidade de
Deus?

A maior felicidade que eu tenho é chegar na Cufa e ver um
monte de criança saindo do ócio, mexendo no computador,
igual todo mundo, vendo essa máquina como uma coisa normal,
e não tão distante. Ver os jovens com filmadora na mão. Meu
último videoclipe foi dirigido por alunos formados no curso
de audiovisual. Vi eles dirigindo como Breno Silveira já me
dirigiu. Isso me deu orgulho muito grande, senti como se a
minha missão no hip-hop estivesse quase cumprida.

Muitas iniciativas comunitárias vieram ao Fórum, como o
Ceasm, o Comitê Comunitário da Cidade de Deus. Como você vê
a presença destas ONGs no FSM?/

Eu fico feliz porque eles nunca foram participativos. Não
porque não quiseram, mas porque nunca tiveram oportunidade.
A ausência da contrapartida do filme “Cidade de Deus”
despertou a necessidade de fazer alguma coisa a mais. Então
saber que tem gente da Cidade de Deus aqui no Fórum faz eu
me sentir representado como Alex, morador da comunidade, e
não como MV Bill, artista. Acho importante as pessoas da
Cidade de Deus estarem discutindo e apresentando a
realidade da favela.

E o que você leva do FSM?

Eu trouxe as minhas experiências e levo um grande
aprendizado. Ontem eu passei na Cidade do Hip-Hop, em um
galpão onde estava tendo uma discussão sobre a ausência da
questão racial nas letras de rap. Eu achei legal o fato de
ter pessoas do rap do Brasil inteiro se reunindo para rever
os conceitos e as táticas. Toda a discussão é muito válida,
mas é muito importante ir além da discussão.

Existe alguma articulação da Cufa com as outras inciativas
comunitárias de outras favelas ou da própria Cidade de Deus?

Existem algumas conexões, e outras que não são tão
necessárias, o que não quer dizer que trabalham como
inimigos. A conexão se dá a partir do momento que se está
fazendo a mesma coisa, que tem o mesmo sentimento.

Em que lugares a Cufa tem representantes?

Cidade de Deus, Jacaré, Acari e está surgindo uma nova na
Pedra do Sapo, no Complexo do Alemão. Além disso, tem
muitos simpatizantes pelo Brasil. Alguns se denominam como
integrantes, como em Cuiabá, no Mato Grosso, ou Minas
Gerais. Mas nada de querer controlar o projeto de ninguém.
Só damos o suporte, às vezes verbal, financeiro, se a gente
puder fazer a ponte com alguma coisa, mas cada um toca os
seus próprios projetos.