Na contramão da democratização, Anatel destrói toneladas de equipamentos de rádios comunitárias

2009-04-16 00:00:00

A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) destruiu oito toneladas de equipamentos de rádios comunitárias de São Paulo, na última quarta-feira (8), alegando estar coibindo “atividades ilegais”.
O ato da Anatel foi repudiado e condenado com veemência pelos coordenadores-executivos do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), para quem a Agência age “na contramão da democratização” no momento em que o Governo Federal está prestes a convocar a 1ª. Conferência Nacional de Comunicação, atendendo os clamores dos movimentos sociais.
Assistida pelo prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (DEM), a destruição foi feita com máquinas cedidas pela prefeitura e ocorreu no aeroporto de Congonhas. A escolha do local foi premeditada, tendo a Anatel evocado o já comprovadamente insustentável argumento de que o sinal emitido pelas rádios comunitárias interfere no tráfego aéreo e o coloca em risco.
Entre os equipamentos apreendidos durante operações de fiscalização do Escritório Regional de São Paulo, nos últimos sete anos, estavam antenas, transmissores, receptores e mídias. A destruição foi registrada e divulgada pela própria Anatel, que alegou também motivos econômicos: seria imperioso desocupar o depósito onde estavam os equipamentos, alugado ao custo anual de R$ 50 mil.
Para José Sóter, Coordenador-executivo da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço) e membro da Coordenação-executiva do FNDC, o ato foi uma reação também dos empresários de comunicação, que são contrários à realização da Conferência e começam a promover ações midiáticas. “É um atentado protagonizado pela Anatel, principalmente porque utilizaram o cenário para passar a ideia de que aqueles equipamentos estariam interferindo nos sistemas de comunicação dos aeroportos”, observa.
Contudo, como destaca Sóter, a interferência provém das emissoras de grande potência. “Nós temos um relatório do CINDACTA [Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Trafego Aéreo], onde consta que a interferência detectada foi de emissoras, inclusive veiculadas ao Sistema Globo de Comunicação. Está comprovado que se trata de uma informação enganosa, com a Anatel a as empresas tentando jogar a comunidade contra as rádios comunitárias, tentando justificar essa ação completamente descabida”, afirma.
Sóter destaca que grande parte dos equipamentos destruídos estão vinculados a processos de regularização das emissoras ainda em tramitação, aguardando o parecer das autoridades responsáveis.
Destruição lembra tempos sombrios
Celso Schröder, Coordenador-geral do FNDC, distingue no ato uma dupla gravidade. Uma delas consiste no ataque ao segmento das rádios comunitárias, já criminalizado, marginalizado pelo poder público. Ele lembra que as comunitárias cumprem um papel inegável de resposta às demandas regionais, de populações que não têm acesso ao serviço de rádio. “Há uma violência absolutamente condenável contra esse segmento, e é muito grave que equipamentos de comunicação de massa sejam destruídos dessa forma”.
A outra característica grave do ato da Anatel refere-se a uma ação simbólica assustadora, segundo o Coordenador-geral. Trata-se de “um ato que acaba remetendo para momentos obscuros da sociedade humana, como a Inquisição e o nazismo, quando instrumentos de cultura, como livros, ou filmes, foram destruídos publicamente. “É chocante que a Anatel tenha realizado registrado e propagandeado a destruição dos equipamentos, utilizando esse evento como uma prática pedagógica”.
Edson Amaral, dirigente da Federação Interestadual de Trabalhadores em Empresas de Radiodifusão e Televisão (Fitert) e integrante da Executiva do FNDC diz que a atitude tomada pela agência deve ser repudiada amplamente. Lembra que a Conferência Nacional de Comunicação abordará as questões que envolvem as rádios comunitárias, incluindo a mudança da legislação em vigor e a padronização dos equipamentos. Ele observa que “a maioria dos equipamentos são fabricados pela indústria nacional, que faz isso com autorização da própria Anatel”.
O dirigente lembra ainda que a Anatel usa critérios diferentes para avaliar a situação das emissoras comunitárias e comerciais. Convive com as irregularidades de muitas emissoras comerciais cujas concessões estão vencidas e reprime as comunitárias que, tendo encaminhado o pedido de registro, aguardam a liberação formal das autoridades. “Eu sou radialista e até hoje ainda não vi a Anatel apreender equipamentos de emissoras comerciais que estão irregulares”, afirma.
Construindo a imagem da comunidade “bandida”
Para Amaral, os equipamentos oriundos de emissoras comprovadamente não comunitárias poderiam, por exemplo, serem destinados para montar rádios educativas, ou rádios dentro das faculdades. “Mas eles agem como se todo mundo fosse bandido. É engraçado que essas coisas aconteçam em um governo popular como do Lula. Ao invés de ir atrás de drogas, contrabando de remédios, eles atuam para prender e marginalizar aquele que quer trabalhar com comunicação e prestar um serviço para comunidade”, opina.
A psicóloga Roseli Goffman, representante do Conselho Federal de Psicologia (CFP) na Executiva do FNDC, afirma que a postura adotada pela Anatel é uma exibição gratuita de violência e visa atingir os pequenos e jamais questionar as hegemonias. Ela acredita que a proximidade da Conferência produz alguns signos que devem ser compreendidos. Um deles é o fato da Agência atuar como força policial e, em um mundo onde se busca a sustentabilidade, onde se fala tanto em reaproveitamento e reciclagem, ignorar esses aspectos.
“Parece um signo que o poder instituído está emitindo, associando às rádios comunitárias a necessidade de destruí-las, criminalizando-as ainda mais do que costuma fazer”, assinala Roseli. Ela observa que o ato de destruir, no entendimento da população em geral, está associado, por exemplo, à destruição de drogas. A isso, soma-se a postura policial da Anatel, reforçando o conteúdo simbólico da ação.
Ataque a práticas legítimas de comunicação
“É no mínimo incompreensível que a Anatel aja na contramão das decisões do governo e destrua um patrimônio da sociedade e da comunidade, através do qual se exercia uma atividade legítima de comunicação, ainda que nem sempre legalizada", afirma a cineasta Berenice Mendes, representante da Associação Nacional das Entidades de Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões (Aneate) na Coordenação Executiva do FNDC. Ela destaca ainda que essa legalização é impedida de se concretizar por conta da própria ineficiência do Estado em dar vazão à demanda da sociedade.
Além disso, acrescenta Berenice, essa definição de clandestino é também muito parcial e reacionária. "O que existe, principalmente, são rádios que aguardam a legalização por conta da inoperância do Estado. Se existem rádios realmente piratas, essas atuam como se comerciais fossem, e elas têm que ter o nome apontado. Essas é que tem que ser fechadas”, complementa.
Para a cineasta, a Anatel deveria fiscalizar de fato as rádios comerciais, muitas das quais estão operando com uma potência muito maior do que a autorizada, essas sim interferindo no tráfego aéreo.
Grandes temem perder o controle da sociedade
Segundo Sóter, os meios comerciais, diante da possibilidade das comunidades terem seus próprios meios de comunicação, acabaram elegendo a radiodifusão comunitária como inimiga número um. “Passaram a criar falsas verdades e a veicular isso repetidamente, com abrangência nacional", afirma. Um exemplo é a Band News, que diuturnamente vem fazendo campanhas contra as radicom. "Dessa forma, elas passam essa falsa verdade para a comunidade e para os órgãos do poder público, como o judiciário, que muitas vezes se apega a essa alegação, que é referendada pela Anatel”, argumenta.
Quanto ao alegado risco causado aos voos, nas relações dos órgãos controladores de voo não há nenhum relato indicando interferências de rádios comunitárias. “As interferências que têm acontecido, e que não são assim tão relevantes, porque nunca houve nenhum acidente aéreo provocado por elas, são causadas pelos meios comerciais de alta potência, que estão com seus equipamentos desregulados”.
Schröder relembra uma audiência pública realizada no Conselho de Comunicação Social, do Congresso Nacional, quando a própria Anatel reconheceu que as interferências maiores sobre aeronaves são de rádios comerciais, e principalmente de telefonia por satélite. “Há estatísticas apontando que as rádios comunitárias não têm interferência. Então esse é um argumento completamente ideológico e falacioso”.
Amaral concorda: “É um argumento ideológico, não tem outro sentido se não esse. Eles usam essa questão para criar uma imagem negativa para a sociedade que, às vezes, acaba denunciando as rádios sem saber que essas emissoras representam um instrumento utilizado em seu favor, de forma democrática”, pondera Amaral.
De acordo com o radialista, os meios de comunicação podem fazer com que a sociedade seja crítica, atuante, e as radicom poderiam estar fazendo esse papel de despertar na sociedade o senso crítico. Só que isso os poderosos não querem. "Nós precisamos acabar com isso, a ditadura já passou, mas parece que continua ainda, com um outro formato, disfarçadamente. As perseguições, como vemos, continuam acontecendo”, conclui Amaral.
Empresas posicionam-se para enfrentar a Conferência
Na opinião de Sóter, as grandes empresas de radiodifusão vão utilizar seus espaços tentando conquistar a opinião pública para as suas teses em relação à Conferência Nacional de Comunicação. “Essa ação midiática, com a Anatel desempenhando um terrível papel coadjuvante, assim como a prefeitura de SP, teve o propósito de fortalecer uma imagem contra os meios de comunicação realmente democráticos. Isso joga o Estado no papel do Robin Hood às avessas, porque está tirando dos pobres em favor dos ricos”, considera.
Por fim, Sóter afirma que a Abraço poderia perfeitamente ser a fiel depositária dos equipamentos. “Eles não precisam alegar que estão eliminando uma despesa desnecessária para então destruir uma fortuna. Quantos milhões de reais representam essas oito toneladas de equipamentos? Elas foram surrupiadas de comunidades carentes, que fizeram muitos sacrifícios para adquiri-las, lutando para tornar realidade o sonho da democratização da comunicação”, lamenta.
*Com a participação de Fabiana Reinholz
 
Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC)
http://www.fndc.org.br/internas.php?p=noticias&cont_key=364471