Delegação brasileira no FMA é ambígua, afirma sociólogo

2006-03-22 00:00:00

A delegação brasileira presente ao IV Fórum Mundial da Água, de cerca de 40 pessoas, tem participação excessiva do setor empresarial e, dentro do governo, encarna uma disputa entre dois modelos de gestão da água. "Na sua composição, ela não representa o que o conjunto da população brasileira pensa a respeito da água", afirma o sociólogo Luis Fernando Novoa, da Rede Brasileira pela Integração dos Povos, presente ao Fórum Internacional em Defesa da Água. Nesta entrevista, e,e adverte que, apesar de não ter mandato oficial, o FMA tem grande poder de influencia sobre os governos, e avisa que a estratégia das empresas no encontro é encontrar novos modelos de privatização do setor.

- Mesmo sem ter caráter oficial nem vinculante, o que representa o Fórum Mundial da Água?

Esse fórum reúne as principais empresas privadas do setor no mundo e, mais do que isso, reúne a hierarquia que nucleia o setor. Ou seja, as maiores transnacionais e as instituições financeiras que as sustentam são quem coordena o Fórum. O núcleo duro do Fórum é o Conselho Mundial da Água, que justamente congrega as maiores transnacionais e as instituições financeiras, como o Banco Mundial. Eles se pretendem mundial, ou seja, querem transformar um lobby particular em uma demanda mundial. Assim, convidam os governos e parte mesmo das organizações não governamentais. É compreensível que os governos sejam obrigados a comparecer, por pressões políticas e respaldo dos paises ricos. O que espanta e a participação de algumas redes, num evento que e claramente antidemocrático e excludente. O FMA serve para a formação de consensos privados no setor de água. Como ele tem apoio dos governos e das instituições financeiras, ele acaba tendo uma influencia muito forte nas instancias deliberativas no plano internacional, como a Organização das Nações Unidas e o Banco Mundial e o BID. Suas deliberações assumem caráter paradigmático nessas instituições. Por isso, o Fórum Internacional em Defesa da Água foi convocado para revelar esse caráter do Fórum Mundial da Água e deslegitimar quaisquer decisões vindas do setor privado.

- Quais são os temas em disputa dentro do FMA?

A conjuntura é problemática para o mercado, porque o que se tem hoje no mundo, nas áreas onde ocorreu a privatização da água, são processos incompletos ou que foram muito mal sucedidos, inclusive do ponto de vista econômico. O quadro da América Latina e exemplar. As empresas não conseguiram obter lucros nem segurança jurídica, e suas iniciativas foram profundamente deslegitimadas pelas sociedades dos paises. Em muitos casos, ocorreram verdadeiras guerras, por conta de uma incorporação pelo setor privado totalmente irresponsável, que deixou regiões inteiras sem água, que diminuiu a qualidade do serviço e que ampliaram as tarifas a níveis inacessíveis a população pobre. O caso mais emblemático e o da Bolívia, que deu inicio a uma serie de mobilizações que culminaram com a vitória de Evo Morales. Ou seja, foi uma derrota econômica e política.

- E isso se reflete no Fórum Mundial?

O FMA acontece de três em três anos. Em 2003, já se vislumbrava esse fracasso. Agora, ha um claro reconhecimento desse fracasso da privatização. O que o setor privado faz, nesse FMA, e tentar recompor sua estratégia de privatização, em outros moldes. Eles já falaram muito em parcerias publico privadas, mas querem ir alem. Agora, propõem que os recursos das instituições financeiras multinacionais sejam destinados preferencialmente para as privatizações.Alem disso, defendem um processo de racionalização do setor, ou seja, mesmo que as empresas se mantenham publicas, elas devam adotar parâmetros de administração privada. E o que chamamos de corporativizacao das empresas publicas, uma estratégia que foi mundo amadurecida neste Fórum Mundial. O presidente do Conselho Mundial da Água chegou a dizer que defendia a gestao publica, mas que fosse controlada pelas coletividades locais, que definiriam se a operacao será publica ou privada. E uma nova estratégia. Eles começam a dar suporte financeiro aos municípios, que na América Latina estão em situação falimentar, desde que as empresas gestoras dos recursos hídricos estejam voltadas para o mercado, ou mesmo vinculada a uma PPP.

- E como você avalia a participação do governo brasileiro no FMA?

O Governo Lula herda uma composição governamental que foi estruturada ao longo de 15 anos de políticas neoliberais. Isso se refletiu dentro do Ministério do Meio Ambiente, da Secretaria Nacional de Recursos Hídricos e, especialmente, na constituição da Agencia Nacional de Águas, que na pratica e um espaço de interlocução do setor privado com o setor publico. No FMA, a delegação brasileira e espelho dessa dupla composição: de um lado, setores públicos que defendem a transparência e a participação social, e outros setores que querem modernizar a gestão da água e adequa-la aos parâmetros de mercado. Na sua composição, a delegação brasileira não representa o que o conjunto da população brasileira pensa a respeito da água.

- E como as PPPs no Brasil podem interferir no setor?

Quando foi apresentado o projeto das PPPs, houve uma luta muito grande para que se retirassem delas os setores essenciais e estratégicos. Da forma como foram constituídas, as PPPs permitem um amplo espectro de interferencia das empresas. E uma lei muito permissiva, como se o governo brasileiro não tivesse capacidade de regulação de fato. E foram aprovadas em um momento que o Governo Lula necessitava dar sinais de confiabilidade ao mercado. Por isso, o setor de água esta muito vulnerável nas PPPs. Mas nos, dos movimentos sociais e organizações que formam a Frente Nacional de Saneamento Ambiental e a Rede Vida, continuamos lutando para que o setor seja excluído das PPPs. Ha possibilidade de reeleição do Governo Lula, e um conjunto de pressões começa a se organizar para que haja a percepção de quão danoso e o fato de setores essenciais, como água, saneamento e energia, ficarem a mercê do planejamento privado.

- E qual e o papel da Lei Nacional de Saneamento Ambiental?

Essa lei foi construida no marco de uma discussão forte dos movimentos sociais e das empresas publicas do Brasil, que deu origem a Frente Nacional de Saneamento Ambiental. Essa frente foi fundamental para barrar a aprovação da lei 4147, apresentada pelo ministro Jose Serra e pelo governo Fernando Henrique, que privatizava amplamente o setor de água no Brasil. Nesse processo, começamos a compor o que seria uma Lei Nacional de Saneamento Ambiental, reunindo água, esgoto, lixo e captação fluvial. O projeto foi incorporado pelo Ministério das Cidades e referendado pelo Conselho das Cidades, mas a partir dai começou um processo lento de desgaste do projeto de lei. Primeiro, pelo Ministério da Fazenda, que retirou do projeto aqueles itens que afastariam os investimentos. Por exemplo, a Fazenda retirou do projeto o poder deliberativo dos conselhos municipais, porque os mercados se sentiriam incomodados. Ao mesmo tempo, começa a se tentar compatibilizar a lei com as PPPs. Não contentes, os setores privatistas estão agora trabalhando num projeto que reedita a lei 4147, procurando mutilar ainda mais o projeto da Lei Nacional de Saneamento Ambiental. O Congresso Nacional vive hoje a pressão do lobby privatista, que esta muito bem organizado.