Via Campesina discute Reforma Agrária e globalização da luta
A Reforma Agrária deve ser um instrumento que proporcione uma relação sustentável entre os camponeses e o meio ambiente, não se limitando somente à conquista da terra. Esse foi o tom que permeou as discussões no primeiro dia do Encontro Internacional dos Sem Terra, organizado pela Via Campesina Internacional, em Porto Alegre (RS), em 4 e 5 de março.
Cerca de 150 camponeses de movimentos sociais da Europa, Ásia, África e Américas falaram sobre suas realidades locais e discutiram uma nova visão sobre a atividade agrícola e a função social da terra. Além disso, os ativistas descreveram suas estratégias de luta e de resistência às políticas neoliberais, principalmente da Organização Mundial do Comércio (OMC) e do Banco Mundial.
Na avaliação de Peter Rosset, integrante do Comitê Internacional de Planejamento para a Soberania Alimentar, que organiza o Fórum Terra, Território e Dignidade, os conceitos da questão agrária vêm sendo alterados com o passar do tempo.
Nesse sentido, ele salienta o papel da Via Campesina, que trabalha para mostrar a abrangência do tema. "A luta pela Reforma Agrária não se limita somente à questão da terra, que é um dos meios físicos utilizados pela agricultura para produzir alimentos. Traz à tona a importância do território, evidenciando uma nova relação de respeito do homem com o meio ambiente", afirma.
Daniel Pascual Hernandez, do movimento indígena da Guatemala, alerta que a discussão sobre o conceito de território, soberano entre os povos indígenas, não deve ser visto como algo restrito a uma única cultura. "Os povos indígenas reconhecem que tanto a fauna e a flora, quanto os seres humanos, fazem parte, e não são os donos do espaço", defende Hernandez. Ele lançou aos movimentos camponeses o desafio de desenvolver uma nova relação entre brancos e índios, cheia de conflitos desde a colonização européia na América Latina.
Outra questão debatida durante o encontro foram as estratégias de luta e de defesa dos territórios. A mais utilizada e que acaba dando mais resultados são as ocupações dos latifúndios, sendo muito praticadas por camponeses americanos e asiáticos, a fim de pressionar os governos a fazerem a Reforma Agrária.
Egídio Brunetto, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Brasil, ressalta a importância das ações locais sempre estarem direcionadas a uma luta global. "Precisamos de lutas internacionais e anti-imperialistas, que tragam os jovens e mudem a relação com a natureza. Temos que produzir alimentos, e não mercadorias", argumenta.
Neoliberalismo
O encontro dos Sem Terra apontou a divergência entre a Reforma Agrária proposta pelo Banco Mundial, que será defendida na II Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural, e o processo defendido pelos movimentos sociais do campo. Para os debatedores, a primeira conferência da organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) sobre Reforma Agrária, em 1979, em Roma (Itália), foi marcada por pontos positivos e negativos.
Ao mesmo tempo em que iniciou o debate em defesa da biodiversidade, considerando as sementes como um patrimônio da humanidade, adotou a política de Reforma Agrária proposta pelo Banco Mundial. "É nesse momento em que ocorre a ruptura entre as instituições mundiais e os movimentos sociais", analisa Brunetto.
O Banco Mundial passam recursos aos governos para que comprem as terras aos camponeses e revendam de forma financiada aos sem-terra, em vez de desapropriar as áreas que não são produtivas, como prevê a Constituição brasileira, por exemplo. "O Banco Mundial ignora a função social da terra, transformando-a em mercadoria", contesta.
Para organização camponesa, FAO dá início ao debate
A Conferência Internacional sobre Reforma Agrária da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) foi realizada de forma precipitada e, por isso, não pode ter caráter conclusivo. Essa é a posição da Via Campesina Internacional, apresentada em entrevista coletiva no domingo (05/03), em Porto Alegre.
A entidade de movimentos camponeses considera positiva a discussão sobre o tema, mas questiona a pressa para a sua realização. Para a Via, a Conferência foi organizada feita às pressas e não conta com participação efetiva das partes envolvidas.
"A Conferência não deve divulgar nenhuma carta de princípios ou encaminhamentos. Deve servir como um espaço para acúmulo de conhecimento e integração entre os diversos camponeses do mundo, vislumbrando um próximo encontro, mais articulado, para daqui há 3 ou 4 anos", defende Egídio Brunetto, da coordenação nacional MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Ele destaca a pouca participação de chefes de Estado e países, indícios da baixa representatividade do encontro. "Isso é grave, porque demonstra a falta de interesse dos governos em fazer a Reforma Agrária", completa.
A Via Campesina acredita que não houve no processo de construção da conferência um acúmulo de discussão sobre Reforma Agrária nos mais diversos países. "O povo do campo não sabe da existência dessa Conferência", afirma o hondurenho Rafael Alegría, integrante da organização camponesa Cococh.
Reforma Agrária de mercado
A Via Campesina reiterou também suas críticas ao modelo de reforma agrária do Banco Mundial. Para a organização, o órgão internacional se baseia no financiamento da compra de áreas, e não na desapropriação dos latifúndios. Dessa forma, a terra se transforma em mercadoria.
A canadense Nettie Wiebe, da organização National Farmer Union, relatou a trágica experiência promovida pelo Banco Mundial no Canadá, um dos países considerados como laboratório de suas políticas. "Atualmente, mais de dois terços das famílias camponesas deixaram a terra. As que restaram estão endividadas e empobrecidas, apesar da grande produtividade do país", contou. Somente em 2005 mais de dois mil camponeses da região de Bangalore, no sul da Índia, se suicidaram devido às dívidas com instituições financeiras.
Rafael Alegría afirmou que a questão da terra é um problema mundial. Nesse sentido, a Via Campesina está lançando a Campanha Global pela Reforma Agrária, que envolve organizações camponesas da Ásia, Europa e Américas. "Na campanha, além da importância da Reforma Agrária, denunciamos a criminalização dos movimentos sociais pela estrutura policial e pelos governos".
Na campanha, a responsabilidade dos governos em adotar a reforma agrária como ação política de Estado também estará presente. "Nesse momento, há ocupação de terra em todas as regiões do mundo. Por isso, pedimos a [presidente do Brasil] Lula que faça a Reforma Agrária logo, e também reforçamos o recado a Evo Morales, presidente da Bolívia. Afinal, a fome não espera", concluiu.
Coreanos resistem contra despejos em suas terras
“Não sei o que pode acontecer com a minha família neste momento”, afirmou o sul coreano Dopehead Zo ao olhar para o relógio e ver que naquele momento seus pais poderiam estar sendo despejados. O camponês faz parte do Comitê dos Residentes de Pyeongtaek e luta para não perder suas terras. Todas as noites, há 550 dias, ele acende uma vela na escola local junto com as outras duas mil pessoas que moram na área. “Só queremos poder morrer aqui”, disse.
A remoção é forçada pelo governo da Coréia do Sul e será realizada para ampliar uma base militar dos Estados Unidos. Segundo Zo, o local é estratégico, uma vez que permite a locomoção de tropas rapidamente para a Coréia do Norte e a China.
Os camponeses têm um histórico de migrações forçadas: durante a ocupação japonesa, que terminou em 1943, foram expulsos de sua terra para a construção da base militar. Mais tarde, com o fim da guerra da Coréia em 1953, tiveram que ser removidos para uma área mais longe do território militar. Nessa época, os Estados Unidos começaram a controlar o local.
Sem ter qualquer tipo de reparação, os camponeses rumaram para o litoral. Pobres e famintos, desenvolveram uma técnica para transformar pântanos em terras agricultáveis para plantação de arroz. “É por isso que essa área significa tanto para nós”, colocou Zo.
O coreano acredita que depois do ataque ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, o local ganhou importância ainda para os Estados Unidos e, por isso, exigem sua ampliação imediata.
Em 2005, o governo sul coreano tomou iniciativas legais para desapropriar as terras. A partir desse fato, os trabalhadores rurais ampliaram sua mobilização, mas não conseguiram evitar que a área fosse transferida para o governo. Para chamar a atenção da sociedade, organizaram uma romaria com seis tratores, com os quais viajaram mais de 1.200 quilômetros para explicar à população a importância da luta.
Em 17 de março, prepararam uma nova mobilização nacional, com mais de 700 tratores. A data celebra o início do plantio e, com isso, centenas de voluntários devem colaborar. “Esperamos que o governo acabe com as terras agricultáveis com grandes pedras. Mas estamos preparados para resistir. Estou muito preocupado porque todos estão em alerta vermelho. Sabemos que os Estados Unidos vão fazer tudo o que é necessário para manter sua hegemonia no norte da Ásia”, concluiu.
Entrevista: Soltani, chefe de organização camponesa no Irã
Sayyaad Soltani é chefe do Kuhi Sub-Tribe of the Qashqai Nomadic Pastoral People, organização iraniana de camponeses nômades. Além dele, mais quatro iranianos vieram ao Brasil para participar do Encontro Internacional dos Sem Terra e do Fórum Terra, Território e Dignidade, encontro paralelo à II Conferência Internacional sobre a Reforma Agrária, promovida pela FAO (órgão das Nações Unidos para Alimentação e Agricultura). Na entrevista a seguir, Soltani fala sobre a situação camponesa e a reforma agrária promovida em seu país.
Porque vocês vieram a Porto Alegre?
Somos pastores nômades do Irã. Sou o chefe de uma sub-tribo nômade. Somos responsáveis para apresentar o relatório sobre a Reforma Agrária e seus efeitos sobre os nômades. Queremos ver também o que os camponeses estão fazendo, para podermos unir as forças, os nômades e os camponeses no mundo. No Irã, a reforma agrária não teve êxito. Ao contrário, pioraram. A Reforma Agrária foi realizada no 1962 por causas políticas debaixo do regime do Shah [aiatolá que governava o país no período], com a pressão dos Estados Unidos sobre o regime iraniano para modernizar e industrializar o país. Os trabalhadores rurais foram transformados em trabalhadores urbanos. Todos migraram para as cidades. Também foi destruído o sistema tradicional de negociar a terra.
Quais são os problemas específicos dos nômades e camponeses no Irã?
Durante a Reforma Agrária, a terra foi roubada. Antes éramos organizados de forma comunitária, e isso se perdeu. O controle sobre os recursos naturais passou para o governo. A nossa estrutura social foi destruída. A nossa organização tentou reconstruir essa estrutura, porque os nômades são as pessoas mais interessadas para conservar os recursos naturais. Agora temos que encontrar uma solução específica para o Irã. Queremos compartilhar experiências com outros, mas temos que achar a nossa solução, porque cada país precisa de uma solução própria.
Você acha que em uma conferência internacional as forças sociais se unem?
Temos dois objetivos, um a curto prazo, um a longo prazo. Em longo prazo, queremos unir forças com outros movimentos no mundo. Em curto prazo, só queremos compartilhar idéias e aprender uns dos outros. Queremos encontrar movimentos que caminham na mesma direção que a nossa. Sou a segunda pessoa na aliança mundial dos povos indígenas nômades. Temos uma aliança mundial, os povos nômades. Sou o representante dos iranianos. Já estamos unindo forças. Mas temos que ver como podemos nos aliar na questão da Reforma Agrária para achar pessoas com a mesma direção. Foram as forças globalizadas que criaram o desastre no campo, inclusive a FAO, que apoiou a reforma agrária que nos trouxe toda a pobreza. Queremos mostrar nossa realidade para a Via Campesina para que os camponeses não cometam os mesmos erros.
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