Mali, um país em busca da soberania alimentar
Sélingé (Mali).- A África também é paz e organização social. Em entrevista ao Brasil de Fato, Mamadou Goïta, um dos organizadores malienses do Fórum Mundial por Soberania Alimenta e integrante do Instituto de Pesquisa e Promoção de Alternativas de Desenvolvimento (Irpad), fala sobre a produção agrícola de seu país e mostra uma África organizada e em busca da sua própria democracia, contrapondo-se à imagem construída pela mídia corporativa de um continente desmobilizado e sempre em conflitos e guerras civis.
Brasil de Fato - Os meios de comunicação propagam a idéia de que a África não pode produzir alimentos porque não tem recursos naturais e devido às guerras...
Mamadou Goïta - Isso é um grande engano. As pessoas têm muitos preconceitos e falam de algo sem ter elementos objetivos. A África é um continente muito rico em termos de biodiversidade e tem um potencial amplo quando se fala de agricultura, cultivo de algodão e pesca, por exemplo. No caso de Mali, que é o caso de vários outros países do continente, temos 1,2 milhão de quilômetros de extensão e o terceiro maior rio da África, o Niger. Há muitas barragens nele e nosso potencial de produção de arroz é amplo, apenas utilizando pequenas tecnologias que as pessoas aqui já manuseiam. Com isso, poderíamos abastecer 50% da demanda da África Ocidental. Isso só para dar uma idéia do potencial do país. Somos auto-suficientes em produção de alimentos, com exceção dos períodos em que temos grandes secas. Este ano, por exemplo, tivemos um grande excedente na produção que pode até ser usado para o comércio local.
Mali, por exemplo, investe muito também na produção de algodão. Éramos o maior produtor há dois anos atrás, com mais de 500 toneladas por ano. Mas para produzi-lo há um grande custo e não temos a tecnologia para transformá-lo industrialmente. Então, um dos problemas é: como transformar localmente nossas próprias matérias-primas? Ou seja, como dominar o processo de industrialização? Então quando dizem que África é guerra, África é seca, não é verdade porque, primeiro, há muitas Áfricas, há muitos países, com suas particularidades. Agora estamos tentando resolver os conflitos existentes. Países como a Libéria, que passou anos em guerra, a questão colocada agora é como reconstruir a nação que, em termos de agricultura, tem muito potencial também. Para mim, a África é também paz, representa movimentos sociais brigando pelos seus direitos e construindo a democracia em seus países. Em Mali, por exemplo, éramos o terceiro maior produtor de ouro. Mas agora, estamos nos beneficiando de apenas 20% do montante que esse comércio gera porque há corporações que vem aqui e tiram isso da população do Mali e levam para o Canadá, Estados Unidos e Europa.
BF - O presidente do Mali, Alpha Oumar Konaré, assinou uma lei de soberania alimentar e esteve aqui, no Fórum, ontem. Qual é a situação política do país hoje?
Goïta - Politicamente, temos paz e a democracia está seguindo seu caminho, apesar de não ser perfeito. Sabemos que quando a sociedade civil caminha para promover a democracia, então, podemos construí-la, claro que levando em conta nossas tradições locais. O problema agora é: como as políticas públicas podem responder às necessidades da população? Na maioria dos países africanos, o debate é como estabelecer políticas coerentes com as nossas necessidades – e não de acordo com necessidades externas.
BF - Como se dá o diálogo dos movimentos com o governo?
Goïta - Há dialogo entre os tomadores de decisões e a sociedade civil e movimentos sociais, o que é muito importante, porque só com espaço para esse dialogo é que avanços podem ocorrer. Isso é porque nossa orientação agrícola, nossas políticas agrícolas são novas desde agosto de 2006, como resultado de uma luta dos movimentos sociais. E devido à nossa ação e ao envolvimento de alguns tomadores de decisões, conseguimos estabelecer essa lei por meio de um processo muito participativo, feito pelos pequenos produtores. Claro que ainda há outros pontos, por exemplo, necessidade de pesquisas na área agrícola. Temos que discutir quais, de que tipo e quais os meios para alcançar isso.
Quando falamos das áreas urbanas, agora estamos na luta contra os transgênicos. Nossa preocupação é como estabelecer uma política para as cidades que respeite a população. A lei (da soberania alimentar) é muito importante porque foi a primeira vez que no continente a questão foi reconhecida por um governo que incorporou esse conceito na legislação. Pressionando por isso em um nível regional, talvez possamos levar as coisas para um nível continental.
BF - No Brasil, há movimentos sociais formados por famílias de atingidos pela construção de barragens. Você mencionou que aqui há muitas. Há problemas similares aqui?
Goïta - Nós enfrentamos esse problema no passado, mas agora não mais, porque os movimentos sociais têm acompanhado de perto essa questão. Quando a barragem é construída é porque houve demanda da população, é em seu beneficio. Ontem, o presidente inaugurou uma nova barragem, feita a pedido da comunidade. Mas há casos em que o produtor não pode pagar uma taxa pelo uso da barragem e, então, saem das terras que são ocupadas por outras famílias. Não são corporações que aparecem no lugar, mas outros malienses. O que acontece é que por vezes o produtor não tem dinheiro para pagar devido a problemas técnicos e então o produtor produz abaixo do esperado. Em alguns casos, o governo não financiou a dívida e expulsou as pessoas das terras, mas os movimentos entraram com um processo e conseguimos ganhar. Aí, as pessoas voltaram para suas terras. Às vezes, a Justiça fica do nosso lado, indo contra governo. Foi uma vitória muito importante.
BF - O que mais se produz no Mali? A produção limita-se às regiões ribeirinhas do Rio Niger?
Goïta - A região que está perto do rio é onde fica nosso estoque de produção em termos de algodão, arroz, batata, frutas (banana, mamão, laranja e maçã) e vegetais (mandioca, cará, berinjela, cenoura, repolho). Daqui esses produtos são enviados a outras áreas do país.
BF - Como as corporações têm respondido aos esforços do Mali para a construção da soberania alimentar?
Goïta - Há agressões por parte das corporações, principalmente da Monsanto e da Syngenta, que têm interesse em nosso algodão, em fornecer o transgênico. Eles têm procurado subornar e financiar pesquisadores para fazê-los aceitar o algodão modificado. Agora, estamos impulsionando um debate nacional sobre essa questão. Há um escritório dessas corporações aqui que têm feito lobby para retirar a lei que proíbe a produção de algodão transgênico. Está claro para eles que uma das portas para o continente africano é Mali, por isso temos que continuar lutando. No final do ano passado, fizemos uma grande marcha para deixar claro que sabemos quem eles são e o exatamente o que querem.