Racismo estrutural - Apontamentos para uma discussão conceitual

2001-03-20 00:00:00

A questão fundamental para se discutir o racismo estrutural nas sociedades capitalistas contemporâneas, na atual fase de acumulação flexível chamada de globalização neoliberal, é partir de duas características que marcam o período que passamos:

1. Alteração no paradigma de produção - da padronização à flexibilização: O sistema de produção fordista, vigente antes do neoliberalismo, é caracterizado como um modo de produção que padroniza os produtos e os produz em larga escala. As tarefas exercidas na linha de produção são especializadas no limite, facilitadas e repetitivas. Há um controle rígido do ritmo de produção por meio de uma forte hierarquia dentro da empresa. Com isto, o capital se reproduz via a economia obtida na produção em larga escala e na queda dos rendimentos individuais proporcionados pela baixa qualificação exigida dos operários. Além disto, a necessidade de se ter esta pequena qualificação, uma vez que as tarefas são simplificadas, permite ao capital economizar utilizando do mecanismo da rotatividade de mão de obra. Por isto, no período em que este modelo de produção foi hegemônico, o desemprego tinha um caráter marcadamente sazonal, era fruto do uso do expediente da rotatividade como forma de rebaixar o custo da mão de obra. Além disto, a exigência de baixa qualificação da mão de obra permitiu que se implementassem políticas econômicas de crescimento industrial sem a contrapartida de um incremento no sistema educacional. Este foi justamente o centro das políticas desenvolvimentistas implantadas no Brasil, particularmente durante o regime militar - o sistema educacional concentrou-se na preparação técnica (adestramento) da mão de obra. O neoliberalismo traz uma alteração profunda com relação a isto. O modelo de produção deixa de seguir os parâmetros do fordismo e passa para o chamado "toyotismo", que se caracteriza pelo uso da tecnologia eletrônica (ou "tecnologia limpa"), a polivalência dos ocupantes dos postos de trabalho (em lugar da especialização no limite, os trabalhadores passam a executar várias tarefas e a se adaptar às mudanças conjunturais na produção) e produção em pequena escala e diversificada. A economia que o capital consegue para se reproduzir, não se dá mais na larga escala e sim no atendimento imediato de demandas específicas e segmentadas. Por isto, no toyotismo, já não se trabalha mais com grandes estoques - o ritmo da produção é flexibilizado, adaptando-se às conjunturas do mercado. O ingresso neste sistema de produção exige do operário um conhecimento mais genérico, capaz de se adaptar às mudanças conjunturais e seu contrato de trabalho fica subordinado a estas mudanças conjunturais. Flexibilização é a palavra chave deste novo paradigma de produção. Flexibilização na remuneração, na forma de contratação, na remuneração, na jornada, nas funções exercidas e mesmo na relação trabalhista. A resultante disto é uma restrição cada vez maior do mercado de trabalho, excluindo todo aquele contingente de mão de obra que não possui as qualificações necessárias para se adaptar a estas exigências deste modelo de produção (transformando o desemprego resultante em permanente e não mais em sazonal) e resregulamentando as relações trabalhistas, deixando-as à mercê da conjuntura produtiva. A noção de direitos universais deixa de existir no contexto neoliberal.

2. Alteração no paradigma de consumo - da padronização à segmentação: O paradigma de consumo também se altera profundamente no neoliberalismo. Com a transformação da produção de larga para pequena escala e diversificada, a produção de mercadorias estrateja para segmentar mais e mais o mercado. Na vigência hegemônica do neoliberalismo, a produção padronizada praticamente criava padrões de consumo. A propaganda de massas foi um instrumento importante para padronizar o consumo, ao impor modas, padrões estéticos e de gosto popular. Hoje, a diversificação da produção alterou profundamente esta estratégia: há uma tendência em se buscar a segmentação de mercado, ao mesmo tempo que se sofistica este mercado consumidor uma vez que esta produção é em pequena escala e, portanto, restrita a um contingente pequeno de consumidores. Por isto, o consumo passa a ser organizado a partir de pequenos "nichos" de mercado que, apesar da sua pequena dimensão, mobilizam quantias fantásticas de dinheiro, já que são, antes de tudo, nichos de consumo sofisticado. Os meios de comunicação de massa que fazem o papel da propaganda e, portanto, são os organizadores do mercado consumidor, adaptam a esta realidade e segmentam sua ação: criam-se meios de comunicação segmentados (impressos, radiofônicos e televisivos) e os meios de comunicação de alcance genérico, como os jornais, buscam segmentar-se dentro de si (como, por exemplo, a criação de cadernos específicos para jovens, mulheres, economia, informática, etc.) para otimizar o discurso publicitário dirigido a estes nichos de mercado.

É importante ressaltar, porém, que se há uma segmentação na produção e na distribuição, há uma forte tendência à concentração da direção destes processos. Esta segmentação de mercado é dirigida por um capital cada vez mais monopolizado, pois as novas tecnologias de produção que permitem a adoção destes novos paradigmas produtivos e de consumo exigem investimentos cada vez mais altos e há uma volatilidade cada vez maior dos equipamentos instalados nas indústrias. Se uma máquina exigia um investimento X e teria uma vida útil de Y anos no período anterior ao neoliberalismo, hoje uma máquina mais moderna exige um investimento 2x e sua vida útil é y/2 ou até menos. Por isto, nesta luta vão sobrevivendo os grandes monopólios e as pequenas e médias empresas praticamente estão condenadas à morte.

Esta nova configuração econômica do neoliberalismo traz alterações profundas no campo social. A primeira delas é uma apartação social entre aqueles que conseguem se incluir no mercado de trabalho e consumo nestas novas bases e aqueles que ficam de fora. A segunda, decorrente da primeira, é a total destruição do que se chamaria de espaço público e sociedade civil, diante do aumento geométrico das disparidades sociais. A terceira é a ineficácia de políticas públicas generalistas que desconsideram esta diferença brutal que se gera no tecido social, transformando direitos em privilégios. E, finalmente, a quarta alteração é a desvalorização da idéia de democracia (no sentido lato do termo) e justiça social, conceitos iluministas que foram gestados na ascendência da burguesia ao poder. Por isto, o neoliberalismo se difere do liberalismo clássico, já que o segundo continha no seu projeto ideal (embora não fosse praticado) a idéia de igualdade, enquanto que o primeiro relativiza a idéia de igualdade e democracia subordinando-a a de eficiência no sentido gerencial capitalista. Com este processo contínuo de seleção e exclusão, afloram os mecanismos raciais como critérios seletivos, primeiramente no mercado de trabalho formal e, depois, como conseqüência, no exercício da cidadania. Por esta razão, que o neoliberalismo intensifica os projetos racistas, inclusive os de caráter político-partidário (como viu-se recentemente na Europa com o ressurgimento das organizações nazi-facistas na França, Alemanha, Itália, Rússia, entre outros).

É importante perceber que nestes tempos de neoliberalismo, mesmo os mecanismos formais de democracia são relativizados: há uma campanha sistemática contra os poderes legislativos; a penetração do marketing político nas disputas eleitorais despolitizando este momento de debate social e transformando estas disputas em meros jogos publicitários e de imagens construídas; a proposta de enxugamento das normas legais (principalmente os tocantes às relações trabalhistas e sociais) tirando qualquer forma de controle social sobre o funcionamento e a ação dos ocupantes dos poderes governamentais, entre outros.

No caso específico de países que foram colonizados, como os da América Latina, que construíram sua base primitiva de acumulação com base no trabalho escravo de negros e indígenas; que passou por uma revolução burguesa de caráter conservador, que manteve estruturas aristocráticas e escravistas quase que intactas, a adoção deste modelo neoliberal aumenta um processo de exclusão que já existia, praticamente condenando ao extermínio os ocupantes deste segmento populacional. Este aumento se dá de duas formas:

a-) de forma extensiva, ao ampliar o número de pessoas que entram na zona da exclusão social, num processo que podemos denominar de democratização da senzala;

b-) de forma intensiva, ao intensificar os mecanismos de exclusão daquelas pessoas que já estavam na zona dos excluídos, num processo complementar que denominaremos de extermínio da senzala.

Os dois processos - democratização e extermínio da senzala - praticamente destróem a já combalida sociedade civil e transforma a cidadania num privilégio cada vez mais inacessível a maioria. Os direitos sociais, embora previstos legalmente, transformam-se em letra morta diante da incapacidade dos poderes públicos garantí-los sem uma ruptura com todo o sistema social. A tendência à concentração de renda faz agravar ainda mais os problemas e, assim, a resolução destes exige cada vez mais investimentos vultuosos que significariam uma mudança dos rumos do desenvolvimento capitalista atual.

Os setores hegemônicos têm duas alternativas diante disto. À direita, pregam simplesmente o extermínio físico destas populações, num processo de faxina étnica. Ao centro, criar mecanismos de seleção para que parcela destes excluídos desfrutem de uma rede mínima de proteção social - que, com o passar dos tempos, torna-se cada vez mais mínima - controlando inevitáveis explosões sociais nestes segmentos excluídos. Chamaremos esta corrente de centro de "administradora das tensóes sociais".

A preocupação com a instabilidade causada pela miserabilidade preocupa uma importante fonte do Poder Mundial: o Banco Mundial que, no seu relatório sobre a pobreza no mundo, chama a atenção dos governos dos países em desenvolvimento que o não atendimento de demandas mínimas dos miseráveis pode por em risco todo o processo de inserção das economias do terceiro mundo no mundo globalizado neoliberal. O veredito do Banco Mundial é taxativo: a miséria pode se transformar em uma guerra civil.

"La estabilidade social depende no sólo de níveles de desigualdad tolerables sino que también requiere que los diversos grupos socioeconomicos, como las agrupaciones étnicas o regionales mantengan la cohesion social haciendo posible el funcionamento de la sociedade, las instituiciones y los mercados. La estabilidad social es un activo intangible: mejora perspectivas de crescimiento y es dificil de reemplanzar una vez perdida (...) La ruptura definitiva de la cohesion social es la guerra civil...

A preocupação do Banco Mundial com o aumento da miserabilidade (mais que uma preocupação, mas um verdadeiro alerta de acordo com o seu informe de 1999) não decorre de nenhum ataque altruísta dos detentores do novo poder mundial. Decorre, unicamente, da preocupação com a instabilidade do sistema; em outras palavras, a miséria pode chegar a níveis insuportáveis que põe em risco todo o sistema em que o capitalismo neoliberal está assentado.

Mas o mesmo informe do Banco Mundial diz adiante:

"A chave para estes e outros planos não relacionados com o emprego é formulá-los de tal maneira que mantenham sua função de representar uma segurança para os mais pobres e não sejam utilizados por aqueles que não se encontram em uma situação menos desesperada."

A ação social do Banco Mundial se desenvolve prioritariamente por cima dos estados nacionais sob o argumento de que estes podem fazer um uso "político" e "populista" de tais ações. Para isto, contam com as ONGs que passaram a receber maiores parcelas dos projetos financiados pelo Banco Mundial. Segundo o relatório Overview - NGO World Bank Collaboration (disponível no site do Banco Mundial), "entre 1973 e 1988, somente 6% dos projetos financiados pelo Banco Mundial envolviam ONGs. Em 1993, um terço dos projetos aprovados incluíam ONGs e em 1994, este percentual chegou a 50%".

O sociólogo norte-americano James Petras afirma que "à medida que aumentou a oposição ao neoliberalismo, o Banco Mundial incrementou os donativos às ONGs. O ponto fundamental de convergência que une as ONGs e o Banco Mundial é o rechaço de ambas entidades ao estatismo. Superficialmente, as ONGs criticavam o Estado desde uma perspectiva de esquerda na qual defendiam a sociedade civil, enquanto que o Banco Mundial o criticava em nome do mercado" (PETRAS, Las dos caras de las ONGs, texto publicado no La Jornada, do México, em 8/8/2000, e reproduzido no site Oficina de Informações)

Estas ações incrementaram não devido ao crescimento dos protestos políticos mas também à falência social do projeto neoliberal que, segundo dados do próprio Banco Mundial, da população global de 6 bilhões de habitantes, 2,8 bi (46,7%) vivem com menos de dois dólares por dia e 1,2 bi (20%) com menos de um dólar diário. O risco de total desestabilização do sistema é evidente e o Banco Mundial tem se desdobrado para agir no sentido de garantir a estabilidade do sistema sem questioná-lo. Esta é a perspectiva da corrente que denominamos de administradora das tensões sociais.

Vejamos agora a intensidade dos mecanismos de extermínio impostos pela globalização neoliberal. O relatório da ONU intitulado Perspectivas da População Mundial - Revisão 2000 divulgado no dia 28 de fevereiro último aponta que a população mundial hoje está em torno de 6,1 bilhões de pessoas e cresce a uma taxa anual de 1,2% - em números absolutos, isto significa 77 milhões de pessoas a mais por ano. O mesmo relatório aponta que até o ano de 2025, os países mais desenvolvidos tenderão a uma redução da população enquanto que os países maios pobres continuarão crescendo até 2050. Dados:

- Os seis países que mais crescem atualmente são: Índia (21%), China (12%), Paquistão (5%), Nigéria (4%), Bangladesh (4%) e Indonésia (3%) - somente estes países são responsáveis pela metade do crescimento anual da população mundial.

- A população de 39 países projetam uma redução nos próximos 50 anos. As estimativas são de redução da população no Japão e Alemanha (14%), Itália e Hungria (25%), Federação Russa, Geórgia e Ucrânia (de 28 a 40%).

Estes dados são importantes para uma reflexão das perspectivas do racismo a se manter o atual padrão de acumulação de riquezas, pois sabe-se que os países mais ricos concentram cerca de 80% da riqueza mundial. Isto significa que as regiões mais pobres é que concentram e concentrarão ainda mais a população mundial, uma conta que faz aumentar a concentração de riquezas.

Uma situação destas tende a intensificar os fluxos migratórios, pois com o aumento da miserabilidade das regiões mais pobres, as populações destes locais irão buscar meios de sobrevivência nos locais onde se concentram as riquezas - e isto é grave a ponto de já se perceber fluxos migratórios em algumas regiões da África em busca de água potável. Por sua vez, as nações mais ricas tenderão a lançar mão de mecanismos racistas e xenófobos para controlar ou mesmo impedir o acesso destas populações migrantes às riquezas de tais nações.

O tráfico de pessoas movimenta hoje de US$7 bi a US$13 bi ao ano no mundo. O tráfico de pessoas cresceu 400% nos últimos dez anos e se assenta, basicamente, na escravização de mulheres para a prostituição que é a terceira principal fonte de riquezas das máfias internacionais, perdendo apenas para o tráfico de armas e o narcotráfico. Cerca de 30 milhões de mulheres estão nesta situação na Europa Ocidental, sendo que 22% delas são provenientes de nações da África e 12% da América Latina.

Um outro problema que preocupa as nações mais ricas é o esgotamento dos recursos da biomassa que, hoje, se concentram justamente nas florestas tropicais localizadas, na sua maior parte, nos países mais pobres, especificamente a América Latina, África e Ásia. Estudos mostram que há um iminente esgotamento das fontes energéticas tradicionais - petróleo e carvão mineral - e uma das alternativas é a biomassa, uma fonte de riquezas renovável e rica em tais florestas. Por isto, os controles do crescimento populacional destes países bem como o não reconhecimento da titularidade das terras de povos que historicamente as ocupam, como os indígenas na América Latina, e ainda o mecanismo das patentes que obrigam as nações mais pobres a pagarem pelo uso industrial de medicamentos produzidos com matéria prima extraída do seu próprio território.

Gostaria de finalizar, colocando uma questão importante para se pensar a crueldade destes mecanismos de extermínio. A Aids hoje é vista como um fator estratégico de controle populacional de países do continente africano. O último relatório da ONU já citado aponta que a expectativa média de vida nos países da África Subsaariana caiu de 50 anos em 1990 para 49 anos em 2000, enquanto que no mundo todo, a expectativa média de vida sobe constantemente. O relatório diz que daqui a 15 anos, a expectativa média de vida nesta região deverá subir para, no máximo, 52 anos. Recentemente, indústrias farmacêuticas transnacionais entraram com ação contra o governo da África do Sul porque este decidiu adquirir medicamentos produzidos no Brasil e na Índia de tratamento da Aids a preços mais baixos que os oferecidos por estas indústrias. A alegação dos empresários: Brasil e Índia não estariam respeitando a lei das patentes. O fato é que o governo sul-africano não teria como manter um programa público de tratamento da Aids se tivesse que pagar os preços impostos pelos laboratórios - mas isto não é nem levado em consideração. Aliás, um dos argumentos de proprietários destes laboratórios é que não adianta fornecer medicamentos aos africanos porque eles são fracos, famintos e o medicamento nem faria reação - em outras palavras, eles têm que morrer mesmo.

Penso que esta reflexão deve nos pautar para discutir uma estratégia dos movimentos sociais na Conferência Mundial de Combate ao Racismo da ONU. Primeiramente, é preciso fazer uma denúncia pública destes mecanismos de extermínio como a face contemporânea do racismo estrutural. Todos estes dados, informações que mostram este cenário dantesco devem ser socializados e apresentados à opinião pública internacional que estará voltada para esta conferência. Segundo, responsabilizar as nações, particularmente as mais ricas ou as mais beneficiadas pela globalização neoliberal por este cenário e cobrar mecanismos eficazes de combate ao racismo. A conferência será um momento ímpar para construirmos uma grande aliança internacional com base nos povos da diáspora africana e os povos indígenas de confronto com este modelo econômico e fazermos que impere, de fato, a lógica da vida e não a lógica da coisa.

Os pontos que uma agenda destas deve defender são:

- a criação de mecanismos de reparações às populações que foram vítimas do processo de escravização, como os afrodescendentes;

- a ratificação de todas as normas e acordos internacionais referentes ao combate ao racismo, como a Convenção 111 da OIT e a Convenção Internacional de Combate ao Racismo na sua plenitude;

- mecanismos de combate a feminilização/racialização da pobreza com base em políticas públicas de caráter universal e generalistas, políticas pontuais e emergenciais e políticas direcionadas de ação afirmativa;

- revisão dos tratados internacionais que tratam do reconhecimento das patentes de forma a preservar o patrimônio biológico das comunidades que vivem nas regiões das florestas do trópico úmido.